A Fiocruz e a austeridade seletiva do doutor Haddad e da doutora Dweck
Os trabalhadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) iniciam nesta quarta-feira, 7, a segunda paralisação por recuperação de perdas salariais no intervalo de uma semana. Segundo dados do Dieese, a corrosão dos salários dos servidores de nível superior da instituição é de 59% desde 2010. Entre os de nível intermediário, a evaporação do poder de compra é de 75%.
A negociação entre o Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz e o Ministério da Gestão e da Inovação (MGI) arrasta-se há um ano. A requisição aprovada em assembleia é de 20% de reajuste em 2024, 20% em 2025 e mais 20% em 2026. O MGI acena com nada, zero de reajuste em 2024, 9% em 2025 e 4% em 2026 – proposta apresentada pela pasta como definitiva e rejeitada pelos servidores como inaceitável.
Enquanto se formava o impasse, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal ganharam reajustes totais de 27% escalonados entre os mesmos 2024 e 2026. A Polícia Penal Federal, de 77%. Tudo em mesas de negociação mantidas pelo mesmo Ministério da Gestão.
De modo que os servidores da Fiocruz pararam na última quinta-feira, 1º, e agora param de novo por dois dias, por seus salários. A luta por reposição salarial terá ainda uma manifestação nesta quinta, 8, no Centro do Rio de Janeiro, com caminhada da sede regional do Ministério da Saúde até a sede regional do Ministério da Fazenda, QG da austeridade seletiva imposta à Fiocruz, e não só à Fiocruz (também às universidades federais, por exemplo), pelo doutor Fernando Haddad e pela doutora Esther Dweck, ministra da Gestão.
A austeridade fiscal, como se sabe, é a quimera de que o Orçamento Público tem que funcionar como o orçamento “da casa da dona Maria e do Seu João”, ou seja, o Estado não poderia gastar mais do que recebe, ou arrecada. Curiosamente, a brilhante economista Esther Dweck é coautora de um importante artigo publicado em 2018 mostrando que a austeridade é na verdade é uma opção política deliberada e que a metáfora do orçamento doméstico é um dos mitos usados para apresentar a austeridade como um imperativo “técnico” incontornável.
“‘Austeridade’ não é um termo de origem econômica, a palavra tem origens na filosofia moral e aparece no vocabulário econômico como um neologismo que se apropria da carga moral do termo, especialmente para exaltar o comportamento associado ao rigor, à disciplina, aos sacrifícios, à parcimônia, à prudência, à sobriedade… e reprimir comportamentos dispendiosos, insaciáveis, pródigos, perdulários… Para Coelho (2014) o discurso da austeridade no campo econômico tem profunda raiz cultural e traços religiosos, pois prega a redenção ou recompensa por sacrifícios prestados. Como veremos mais adiante, o discurso moderno da austeridade ainda carrega essa carga moral e transpõe, sem adequadas mediações, essas supostas virtudes do indivíduo para o plano público, personificando, atribuindo características humanas ao governo”, dizia Esther Dweck seis anos atrás.
Seis meses atrás, em uma entrevista, a ministra disse que entendia que os servidores “tiveram uma desvalorização, e a gente está recompondo isso”, mas… mas Esther Dweck lecionou uma vez mais, agora diferente: “é importante entender que isso ocorre dentro dos limites do nosso arcabouço fiscal”.
Naquele artigo de 2018, Esther Dweck lembrava ainda – e talvez alguém precise lembrá-la agora – que a austeridade fiscal é um dos três pilares do neoliberalismo, junto com a liberalização dos mercados e as privatizações.
No que pode resultar o achatamento salarial imposto a pesquisadores de ponta que produzem vacinas em Biomanguinhos, remédios em Farmanguinhos, num mercado brasileiro de medicamentos específicos onde a Fiocruz figura em segundo lugar entre as 10 empresas independentes que mais faturam, sendo a única representante nacional num ranking liderado pela Pfizer? A quem interessa fragilizar a Fiocruz, desestruturar as carreiras da fundação, dividir seus servidores?
No último domingo, 4, o presidente da Fiocruz, Mario Moreira, entregou uma carta “ao nosso primeiro doutor honoris causa desta casa”, o presidente Lula, contando ou lembrando a Lula que:
“Em breve, alinhada com as politicas industrial e de saúde de seu governo, a Fiocruz se tornará uma grande produtora global de vacinas, após conclusão da nova planta de vacinas no RJ, uma das maiores obras do PAC. A instituição foi selecionada pela OMS para ser produtora mundial da nova vacina contra Covid-19 em plataforma de mRNA. Em breve, em outra iniciativa inovadora, iniciará a produção de Terapias Avançadas, para cura do câncer e de doenças genéticas, terapias as quais a população tem dificuldades em acessar e cuja introdução nos programas do Ministério da Saúde, vem pressionando enormemente o orçamento do SUS. A Fiocruz, atuando nessa área, será capaz de ofertar esses mesmos produtos a um terço dos valores praticados atualmente”.
Na carta, Mario Moreira e todo o Conselho Deliberativo da Instituição pedem a intervenção de Lula “para que seja revista a proposta apresentada como definitiva pelo Ministério da Gestão e da Inovação e que seja concedida à Fiocruz a oportunidade de receber uma nova proposta, condizente com o que essa instituição, prestes a completar 125 anos, representa para este país”.