A Justiça é lenta, injusta, errada, torta e para Ágatha Félix não chegou mesmo, não
"A Justiça por vezes é lenta, é cega, é burra, é injusta, é errada, é torta, mas ela chega", disse a juíza do caso Marielle. Não chega, não.
A menina Ágatha Vitória Sales Félix foi morta pela Polícia Militar no dia 20 de setembro de 2019, uma sexta-feira, no Complexo do Alemão, Rio de Janeiro. Ela tinha oito anos de idade. Na segunda-feira seguinte ao assassinato, 23 de setembro, dizia assim no programa Bom Dia Rio, da Rede Globo, “um garoto pobre do morro da Providência que estudou, trabalhou, virou delegado e chefe da Polícia Civil”, antes de virar “especialista em Segurança Pública com currículo”:
“Quando um policial participa de uma operação como essa, em que resta alguém morto ou ferido, é instalado um procedimento e aquilo vira um processo judicial. Esse processo judicial pode durar até 20 anos. Ele pode terminar antes, ou pode durar até 20 anos. Então, durante esses 20 anos esse profissional de polícia vai estar com uma espada no pescoço dele”.
Coitado. Mas menos mal que terminaram antes as dores de espada do profissional de polícia Rodrigo José de Matos Soares. Neste sábado, 9, cinco anos após Soares dar o tiro de fuzil que atingiu Ágatha Félix nas costas, o Rio amanheceu com a notícia de que na madrugada o PM foi absolvido pelo 1º Tribunal do Júri da acusação de homicídio duplamente qualificado, por motivo torpe e mediante recurso que dificultou a defesa da vítima.
Rodrigo Soares e outros PMs disseram em juízo que o disparo foi em legítima defesa porque “uma dupla em uma moto passou atirando”. A versão foi contestada por várias testemunhas e cabalmente desmontada pela perícia da Polícia Civil. Era mentira. O tiro de fuzil que ricocheteou num poste e matou Ágatha foi mais um disparado à toa, ao léu, pela polícia do Rio numa favela do Rio, no caso porque o policial Soares pensou ter visto um favelado empunhando uma arma onde havia apenas um favelado carregando uma esquadria de alumínio.
Nenhum policial do Rio jamais pensou ter visto uma arma onde havia apenas uma raquete de badminton nas mãos de algum inocente do Leblon.
Mesmo com perjúrio do réu, com tudo, o juri entendeu assim: “foi sem intenção de matar” que Rodrigo Soares apertou o gatilho de um fuzil no meio da favela cheia, sem nem sinal de “injusta agressão” à polícia, assumindo o risco, por exemplo, de arrebentar a caixa torácica de uma menina preta de oito anos de idade que passava dentro de uma Kombi na companhia de sua mãe.
Na manhã desta sexta-feira, 8, antes do julgamento começar, a mãe de Ágatha esteve no Bom Dia Rio, diante do mesmo apresentador que cinco anos atrás estava no mesmo estúdio com o “especialista em Segurança Pública com currículo”, aquele que citou o problema do policial, coitado, que vive anos com a espada no pescoço só porque matou um filho ou uma filha da classe trabalhadora.
"Há cinco anos eu e a minha família aguardamos por este dia. Não está sendo fácil. É até uma resposta para toda a sociedade, para todos aqueles que choraram junto conosco. Para todas as famílias que ainda aguardam uma audiência, aguardam um julgamento e que possa ocorrer a justiça. Que o réu venha pagar pelo que ele fez", disse a mãe de Ágatha no Bom Dia Rio.
A resposta não veio. O réu não vai pagar pelo que fez.
Nem o réu, nem Wilson Witzel, nem Cláudio Castro, de quem o “especialista em Segurança Pública com currículo” virou secretário de Administração Penitenciária, antes de virar candidato a vice-prefeito do Rio em chapa bolsonarista, para depois compartilhar post de Carla Zambelli mostrando Javier Milei “desmascarando a agenda ideológica da ONU”, como por exemplo “as quarentenas globais de 2020”.
Neste sábado, no tribunal, uma tia de Ágatha se desesperou com a absolvição de Rodrigo Soares: “eu tô com ódio! Com ódio!”.
"A gente espera cinco anos para ver uma decisão, pra justiça prevalecer, e cadê?”, desesperou-se a avó de Ágatha, na saída do tribunal.
Poucos meses atrás, em julho, desesperaram-se os parentes do menino João Pedro, morto pela PM do Rio em 2020 também com um tiro de fuzil, nas costas também, quando tinha 14 anos de idade. Desesperam-se os parentes do João quando os três policiais indiciados pelo homicídio e por fraude processual foram absolvidos por “legítima defesa”.
Sem justiça para o João também.
Com a palavra, a juíza do caso Marielle Franco. A juíza que ao condenar Ronnie Lessa e Élcio Queiroz garantiu num belo discurso, amplamente aplaudido, que neste país “a Justiça por vezes é lenta, é cega, é burra, é injusta, é errada, é torta, mas ela chega”; que "com toda dificuldade de ser interpretada e vivida pelas vítimas, a Justiça chega aos culpados”.
Que a juíza do caso Marielle explique melhor agora como funciona isso, tendo em vista que, das duas, uma: ou a Justiça na maioria das vezes não alcança os culpados, coisa nenhuma, ou a tia, a mãe e a avó de Ágatha Félix padecem agora, num sofrimento adicional, de dificuldade de interpretação.