'A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram'
Efeito fura-bolha de "Ainda estou aqui", agora com a conquista do Oscar, exige recordar o discurso de Ulysses Guimarães e rechaçar anistia a torturadores.
— Olha, olha, olha!
Na TV, um noticiário sobre Rubens Paiva. Neste 2014, apareciam todos os dias notícias sobre o caso Rubens Paiva. Todos os dias, novidades. Ela sentadinha inerte na cadeira de rodas. Apareceram fotos dele de arquivo na tela. Era a foto do seu ex-marido, era o nome dele, falavam dele, desvendavam segredos sobre a morte dele:
— Olha, olha, olha!
Ela olhava. Com lágrimas. Ouviu a notícia. Começou a dizer baixinho:
— Tadinho, tadinho, tadinho...
É assim que Marcelo Rubens Paiva descreve, no livro Ainda estou aqui, a reação de sua mãe, que, apesar do avançado estágio do Alzheimer, teve a atenção despertada pelo noticiário da TV, sempre ligada na sala – nessa fase da doença, “a TV é um chiclete para os olhos” –, e deu o alerta.
No filme, o que passa na TV é a conclusão do relatório da Comissão Nacional da Verdade. Ouve-se o burburinho da família reunida na varanda. Fernanda Montenegro/Eunice Paiva está sozinha na sala, com ar ausente, diante da tela. De repente os olhos brilham, os músculos da face enrugada se contraem, o rosto se ilumina.
A representação silenciosa daquela emoção é muito mais poderosa do que se reproduzisse o que de fato – segundo o relato de Marcelo – aconteceu.
A conquista do Oscar de melhor filme estrangeiro culmina a trajetória vitoriosa de Ainda estou aqui e lhe confere um reconhecimento público num momento crucial da nossa vida política, quando não apenas os denunciados pela frustrada tentativa de golpe após as eleições de 2022 irão a julgamento como a própria Lei de Anistia de 1979 está entrando novamente em pauta: nesse caso, não se tratará de apreciar exclusivamente os casos de desaparecimentos, como o de Rubens Paiva, mas também os de “graves violações de direitos humanos” naquele período, o que envolve praticamente todo tipo de violência cometida pelos agentes do regime. Como disse o vice-presidente da Comissão de Anistia, José Carlos Moreira da Silva Filho, “o bordão ‘sem anistia’ para golpista, ‘sem anistia’ para quem defende tortura, ‘sem anistia’ para ditadura, agora popularizou-se”. Ainda estou aqui teve esse poderoso efeito fura-bolha, ao levar multidões ao cinema, gente que ignorava aquela história e se sensibilizou com ela, vibrou com a conquista de Fernanda Torres no Globo de Ouro e agora, no meio do carnaval, usou máscaras da atriz e pulou de alegria com vitória no Oscar. A excelente campanha de marketing não atraiu a atenção apenas ao filme: há relatos de pessoas simples – porteiros, diaristas – que ainda não o viram porque preferiram ler o livro primeiro.
Em meados de fevereiro, na entrevista ao programa de Christiane Amanpour, da CNN, após o filme ter sido indicado para concorrer a três categorias do Oscar, Walter Salles destacou que aquela não era uma história sobre um tempo passado, era sobre o tempo presente e a importância da memória. “Rodamos o filme em 2023 sem termos a mais pálida ideia de que teria havido uma tentativa fracassada de golpe de Estado no fim de 2022. Quando o filme estava sendo lançado no Brasil e acolhido pelo público, surgiram as notícias de que a Polícia Federal havia descoberto o plano do golpe. Então, no meio do lançamento do filme é que percebemos que, mais que nunca, o filme era sobre hoje, sobre o que estava acontecendo no país naquele exato momento. Foi uma coincidência extraordinária”.
Por isso é tão importante recordar – e atualizar – esses trechos do discurso de Ulysses Guimarães ao anunciar a nova Constituição, em 5 de outubro de 1988:
Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério.
Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo!
A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou o antagonismo do Estado.
O Estado prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilella, pela anistia, libertou e repatriou.
A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram.
Naquela época – mais ou menos como ocorreu em Portugal imediatamente após o 25 de Abril –, todos os fascistas haviam desaparecido. Os mais radicais eram no máximo de centro-direita.
Demorou para voltarem a mostrar a cara.
Naquela época talvez fosse possível falar genericamente em “sociedade” contra o Estado, ainda que parte dela tenha apoiado e sustentado o golpe de 64. Mas, na esteira da campanha por anistia ampla, geral e irrestrita e, a seguir, na campanha pelas Diretas, o desejo de mudança prevalecia.
Depois de recuperado o direito de votar para presidente, depois de o país viver o mais longo período de regime democrático de sua história, começou a ressurgir o movimento pelo retorno dos militares, com base na distorção do passado recente. Ditadura? Nunca houve. Ditadura era agora, com o PT no poder. Ditadura é o STF. Ou: ditadura houve sim, mas era necessária, para combater o comunismo e restabelecer a ordem.
Com o golpe jurídico-parlamentar de 2016, um defensor da tortura, da ditadura e do extermínio de opositores teve o caminho aberto para chegar ao poder. Pelo voto, com apoio popular. E por muito pouco – apesar de tudo, apesar, sobretudo, do seu comportamento durante a pandemia – não foi reeleito.
Hoje, é preciso reconhecer que a sociedade não é apenas Rubens Paiva. Mais ou menos metade está, ou ficou, do lado dos facínoras que o mataram.
Por isso é tão importante aproveitar a onda de popularidade que o filme alcançou, para que o bordão “sem anistia” continue a se espalhar, como vem ocorrendo durante este carnaval: para que a consciência do que foi a ditadura saia do gueto da esquerda, para que os facínoras de hoje sejam julgados e condenados pelo que fizeram, e para que tão cedo ninguém ouse pensar em rasgar a Constituição ou homenagear torturadores.
"Mais ou menos metade ficou ao lado dos facínoras"> De onde saiu esta avaliação, professora? Qual pesquisa, qual levantamento? Em plena ditadura, sob o AI-5, censura à imprensa, essa estimativa sem fundamento real parece reforçar o pleito dos facínoras e golpistas, de que "atenderam o apelo popular"! Não há dúvida de que a ditadura tinha apoio social, em primeiro lugar na burguesia, em segundo na classe média (à época) ascendente e em segmentos populares despolitizados e doutrinados pela propaganda governamental, incluindo musiquinhas como "Eu te amo, meu Brasil". Mas METADE? De onde vem essa "estatística"? Falemos agora da atualidade. Sim, o Brasil ficou e está dividido ao meio. Significa dizer que todos os eleitores do Inominável e opositores de Lula apoiam ditadura, torturas e assassinatos? É essa a interpretação de uma cientista social tão qualificada? Não será uma avaliação movida por raiva? Obs.: compartilho a raiva, mas ela não é instrumento de conhecimento da realidade. No mais, obrigado pela postagem. Concordo plenamente que é imprescindível difundir ao máximo a exclamação de Ulysses Guimarães.