Adultização: a infância de um líder
O vídeo de Felca é sobre a sexualização de crianças e adolescentes na internet, mas é também sobre a exposição de crianças e adolescentes inebriados — por quem? — com o "fogo de vencer".
No último 2 de agosto, quatro dias antes de Felca subir no YouTube seu vídeo sobre adultização, o “pastor mirim que prega como um adulto” Miguel Oliveira foi o pequeno grande astro da vigília Blumenau em Chamas. O evento neopentecostal, cujo nome faz lembrar um famoso filme sobre supremacistas brancos (e suas vigílias incendiárias no Mississippi), é realizado todos os anos, já há 10 anos, na cidade catarinense que tem uma célula neonazista para cada seis mil habitantes.
O vídeo de Felca é sobre a sexualização de crianças e adolescentes na internet, mas é também sobre a exposição de crianças e adolescentes inebriados (por quem?) com o “fogo de vencer”. Miguel Oliveira tem 15 anos e costuma comparar seu “chamamento” precoce ao de Davi, que, de fato, ou melhor, na Bíblia, tinha mais ou menos a mesma idade quando deu cabo de Golias, acertando uma pedrada no meio da testa do gigante filisteu.
Mais de três mil anos depois, a entrada para a vigília Blumenau em Chamas foi um quilo de alimento não perecível, mas uma máquina de débito — e de Pix — correu a plateia antes de Miguel Oliveira subir ao palco montado na Vila Germânica, mesmo local onde acontece a Oktoberfest. No palco, contando a história de outra personagem bíblica, Rebeca, que não conseguia engravidar mas foi atendida por Javé, o rapazinho saiu-se com essa: “Deus abriu em cima para falar e abriu em baixo para fazer”.
Neta de Naor, irmã de Labão, esposa de Isaque e mãe de Esaú e Jacó por milagre de Deus, a graça alcançada “em baixo” por Rebeca saiu por isso mesmo: de graça. Já o mais viral pastorzinho de ovelhas desde Davi da tribo de Judá, com 1,4 milhão de seguidores no Instagram, pede Pix de R$ 100 para “Deus abrir a porta” da prosperidade. Isso quando não está rasgando “representações simbólicas” de laudos de leucemia aos gritos de “o câncer não vai voltar!”, “eu quebro isso agora!”, “eu sou o Deus do dia 24 de novembro!”.
Em abril, o conselho tutelar advertiu os pais do missionário teen sobre a exposição do filho na internet. Poucos dias depois, porém, Miguel Oliveira já estava no canal Assembleianos de Valor no YouTube dizendo ter o sonho de ser “deputado, senador, até mesmo presidente”, para defender “Deus, pátria, família e liberdade”. E, na infância de um líder, mandando o seguinte recado seja para conselhos tutelares percebidos como sovietes, seja para aqueles que balançam diante da última tentação da esquerda, a de trocar o trabalho de base pelo abraço na “prosperidade” e pela “aproximação” com o charlatanismo religioso:
“Eu não negocio com a esquerda. Eu não negocio com quem quer mexer com as nossas crianças. Eu não negocio com quem quer parar a obra de Deus”.
No último 6 de agosto, horas antes de o vídeo de Felca ir ao ar e com os plenários da Câmara e do Senado sequestrados por golpistas, o missionário kid apareceu em sua concorrida conta no Instagram dizendo assim, de terno e gravata: “cadê o ministro Alexandre de Moraes? Cadê o ministro que deu o dedo do meio pro povo? Cadê o ministro que quis dobrar a aposta com os EUA? Cadê o ministro que colocou senhoras e senhores como presos políticos? Agora é a hora, deputados e senadores, de vocês lutarem por nós. Reage, Brasil!”.
Há poucos meses, o Ministério Público abriu investigação sobre ameaças feitas por “haters” a Miguel Oliveira na internet. E quem investiga as conexões e ramificações dos shows de engodo e faccionismo empacotados Brasil afora como liberdade religiosa? Quem está por trás de crianças e adolescentes — Miguel não é o único — expostos na internet para espalhar o “fogo de vencer”, entre outros rastilhos de pólvora entre paióis?
Em maio, na matéria “Deixai vir a mim os pequeninos”, Come Ananás puxou um fio desse novelo a partir da conta de Miguel Oliveira no Instagram, onde havia (agora não há mais) para seus 1,4 milhão de seguidores um link com a expressão “limpa nome”. O link levava ao site de uma empresa que promete o milagre da “blindagem de CPF e CNPJ” e “limpar seu nome antes mesmo de pagar as dívidas”. A empresa leva o nome de um poço cavado por Isaque (Lembra dele? O esposo de Rebeca) na cidade filisteia de Gerar: “agora o Senhor nos abriu espaço e prosperaremos na terra” (Gênesis 26:22).
O dono da empresa, Danilo Pereira da Conceição, é da mesma igreja de Miguel, em Carapicuíba, na Grande São Paulo; participou de manifestações golpistas em 2022 e afirma em vídeos na internet que “Deus ouviu sua oração e me mandou aqui para dizer para você que a Reobote Soluções Financeiras vai lhe dar 20% de desconto pra você limpar o seu nome e realizar os seus sonhos”.
Em dezembro do ano passado, o “pastor-presidente” da igreja, Marcio Silva (“Pastor Marcinho de Carapicuíba”), fez o seguinte merchandising numa pregação, diante de centenas de pessoas que muitas vezes buscam na igreja, na religião, conforto e esperança diante — quanta coincidência — das dificuldades financeiras:
“O Danilo é de Sergipe. Me assistiu numa live. Deus me usou para falar com ele. Veio congregar comigo. Alphaville, gente chique. O Danilo tem uma empresa que dá crédito pra quem não tem crédito. Até cartão de crédito a empresa dele dá. Quem tem o nome negativado pode procurar ele. Fala em meu nome que consegue”.
Hoje, o link da bio de Miguel Oliveira no Instagram informa que ele é embaixador de uma Associação Internacional dos Embaixadores da Paz no Brasil (AIEB), além de membro da Assembleia de Deus Avivamento Profético em Carapicuíba.
O presidente da AIEB, Rodrigo Agostini Santana, é também “pastor-presidente” de uma outra igreja, o Ministério Refúgio, novinho em folha, aberto precisamente há um ano, um mês e 22 dias em Duque de Caxias, no Grande Rio. No púlpito do Ministério Refúgio, o cantor gospel Jorginho de Xerém profetizou dias atrás a entrada de duas crianças da congregação nas categorias de base do Fluminense, em Xerém, no meio de uma campanha de orações e pregações promovida pela igreja cujo tema remete a Davi e Golias: “a pedra que derrubou o meu gigante”.