Afinal murcharam tua festa, pá?
Mais de meio século depois, avanço inédito da extrema-direita em Portugal confronta os valores da Revolução dos Cravos.
“A coisa está a acontecer à vista de todos, mas parece que ninguém quer ver”, escreveu o antropólogo Miguel Vale de Almeida em fevereiro de 2023. Nessa época, ainda se cultivava a ilusão de que Portugal estaria imune ao avanço da extrema-direita pelo mundo. Pude constatar essa propensão ao autoengano quando cheguei ao país, no último dia de outubro de 2018, imediatamente após a vitória de Bolsonaro, para realizar um projeto de pesquisa. Escaldada por aquela experiência surpreendente e atordoante, temia a repetição da história. Mas, em conversas com amigos e lideranças de esquerda, a reação era em geral a mesma: não se levava a sério essa possibilidade.
No entanto, a “coisa” só fez crescer. Já em 2019 o principal movimento de extrema-direita constituiu seu partido, o Chega, e obteve sua primeira vitória ao eleger seu líder, André Ventura, na eleição daquele ano. Daí em diante, por motivos diversos, nenhum governo se sustentaria até o fim. Nas eleições antecipadas de 2022, quando o Partido Socialista obteve maioria absoluta, o Chega saltou para 12 deputados. Dois anos depois, em novas eleições antecipadas, um mês e meio antes das comemorações do cinquentenário da Revolução dos Cravos, o Partido Socialista seria derrotado pela Aliança Democrática por pequena margem e o Chega ampliaria sua bancada para 50.
Foi o perfeito anticlímax: 50 fascistas nos 50 anos de Abril. Mas, além desse aspecto simbólico, o peso desse partido teve consequências práticas ao impor sua pauta: ao mesmo tempo em que negava qualquer hipótese de aliança com o Chega, o primeiro ministro, Luís Montenegro, tomava medidas e adotava um discurso caros à direita radical, assumindo premissas falsas sobre aumento da criminalidade – quando as estatísticas mostravam o contrário – e associando-o à imigração, o que os números oficiais também desmentiam.
Neste domingo, 18 de maio, em mais uma eleição antecipada, a AD venceu novamente, desta vez com alguma folga, mas longe da maioria absoluta, e a extrema-direita avançou ainda mais, empatando com o PS em 58 representantes, mas provavelmente o ultrapassará e chegará a 60, com os votos dos eleitores no exterior.
Na campanha, a AD anunciou, em tom de comemoração, a notícia de que 18 mil imigrantes seriam notificados a deixar voluntariamente o país, sob pena de deportação, transformando uma medida administrativa – além do mais questionável, dada a incapacidade da burocracia em lidar com demandas crescentes de quem busca legalizar-se – em pauta política. No discurso da vitória, Luís Montenegro afirmou seu compromisso em “salvar o Estado social”, mas arrancou palmas e exclamações quando declarou seu empenho em “continuar a levar a cabo mais regulação da imigração, mais reforço da segurança, mais combate à criminalidade grave e à corrupção, um reforço das nossas estruturas das forças de segurança e também das Forças Armadas”.
Ninguém pode ter dúvida sobre o que essas palavras significam, nem sobre os rumos que a política portuguesa tomará agora, com mais esse avanço da extrema-direita na sua representação parlamentar e na sua capacidade de promover o caos e a violência nas ruas, como já demonstrou inúmeras vezes nos últimos anos.
Vale de Almeida, no seu artigo de dois anos atrás, assinalava o trabalho “preparatório, ‘de sapa’”, produzido pelos meios de comunicação, tanto populares quanto de elite, uns excitando os famosos “instintos mais primitivos” das massas, outros gerando “na direita democrática uma deriva para a incorporação das agendas da extrema-direita, de certa maneira produzindo a crise do PSD”. Por isso, afirmava que os meios de comunicação descumpriam sua responsabilidade pela defesa da democracia. “Mais: são em grande parte responsáveis pela coisa que está a acontecer. São atores políticos plenos, geradores da ‘coisa’”. Sem descurar, naturalmente, do papel das redes sociais e das várias formas de desinformação que circulam por esse meio.
(A propósito do papel da TV na propagação das ações de André Ventura, este trecho da crítica que o jornalista David Dinis, diretor adjunto do Expresso, fez ao ser entrevistado pela SIC é exemplar: exatamente no momento em que falava do exagero da cobertura da hospitalização do líder do Chega – que, no final da campanha, aparentemente buscou o “efeito facada” de Bolsonaro, passou mal diante das câmeras enquanto discursava, foi socorrido, internado e diagnosticado com um... refluxo gástrico, fez-se fotografar no hospital e depois apareceu com um terço pedindo orações, tudo isso, coincidentemente, no Dia de Fátima –, exatamente nesse momento Dinis foi interrompido pela apresentadora para um “direto” do hospital, diante da expectativa, afinal não confirmada, de que o deputado seria liberado naquele momento).
Na sua análise, Vale de Almeida desce ao nível mais profundo que permite compreender o processo em curso: o da profunda desigualdade social, geradora de ressentimentos e distanciamento entre a experiência social “de governantes e elites, de um lado, e governados e povo, do outro”, numa fase em que o capitalismo “já não precisa da democracia”. Pois “quem precisa da regulação de conflitos, da negociação, ou da almofada do Estado social, quando a produção se deslocaliza do espaço da comunidade e os vínculos de trabalho se tornam precários de forma quase naturalizada? Sem chão comum não há democracia, e o desígnio da extrema-direita é justamente acabar com esse chão”.
Porque a democracia já não é mais necessária, “o foco é na política étnica (‘os ciganos’), nacionalista (com interpretações da História reminiscentes do salazarismo, incluindo a negação da existência de racismo), patriarcal (a família e a ‘ideologia de gênero’). E será em breve xenófoba também, face à imigração, como o demonstra já a contaminação do discurso de Carlos Moedas ou de Luís Montenegro por conteúdos de extrema-direita, ainda que disfarçados por retórica ‘civilizada’”.
“O plano é simples e é um plano ‘à húngara’: assaltar a democracia para a destruir, alterando a Constituição, apresentando as lideranças como ‘não-políticos antipolíticos’(!), e deixando intocados os interesses econômicos e financeiros de grandes grupos empresariais”. (A proposta de alteração da Constituição, por sinal, foi levantada na reta final desta campanha, e o resultado eleitoral permite, em tese, que essa proposta seja realizada apenas pelas forças de direita e extrema-direita, caso se ponham de acordo).
“Como resistir a esta coisa que está a acontecer mas que ninguém parece querer ver?”, perguntava então o antropólogo. “Certamente não será através de platitudes repetidas, sem explicitação de conteúdo e sem provas no real, sobre a ética republicana, o Estado de Direito, a democracia liberal”. Sugeria duas possibilidades: “ou um populismo de esquerda, que, mobilizando sentimentos como os que a extrema-direita explora, os canalize para causas emancipatórias e de igualdade, acertando nos alvos que a extrema-direita esconde; e/ou o aprofundamento da social-democracia, uma social-democracia radical, séria, profunda, que tão-pouco esconda os alvos em cuja cama já se enrolou demasiado”.
O arremate funciona hoje como vaticínio: “caso contrário, a ‘coisa’ ganha isto tudo em meia dúzia de anos”.
Meia dúzia de anos, rigorosamente: de 2019 a 2025, aumento de representação parlamentar de um para, pelo menos, 58, mas provavelmente 60.
Ao comemorar a vitória eleitoral, André Ventura deixou claro que seu objetivo é continuar a avançar para, num futuro próximo, tornar-se primeiro ministro.
Desta vez, não teve refluxo, nem foi preciso dramatizar: a batalha já estava ganha.
Reproduzo, abaixo, artigo que escrevi em agosto de 2020 sobre o avanço do fascismo em Portugal, para um projeto jornalístico que, afinal, não vingou. Mas o texto ajuda a entender o ambiente em que se produziu a atual excitação em torno dos valores mais radicalmente opostos aos que inspiraram o 25 de Abril.
Renitentes, guardamos um velho cravo e, mais que nunca, precisamos ir atrás da tal semente que, esperamos, tenham esquecido nalgum canto de jardim.
A escalada fascista em Portugal, ou ceci n’est pas du racisme
Aconteceu num táxi, em Lisboa. Eu estava com uma amiga portuguesa e ela, como de hábito, puxou conversa com o motorista, mas começou a se irritar com as críticas dele ao governo e mais ainda com os elogios a Salazar. Era filho de um retornado e não se conformava com as consequências da derrota no Ultramar. Em dado momento declarou que odiava o Mário Soares. Se pudesse, matava-o.
Soares, bem a propósito, tinha morrido poucos meses antes, mas o homem continuava a fantasiar seu desejo de vingança e a saborear um protagonismo irrealizável.
Foi em 2017, mas a cena nunca me saiu da memória. Que ressentimento era aquele que se entranhava tão profundamente na alma de uma pessoa a ponto de fazê-la cultivar tamanho ódio pelo resto da vida?
Minha amiga o contestava com muito conhecimento de causa: há décadas dedicava-se às questões da guerra colonial e das memórias do tempo da ditadura. Desdobrava-se em argumentos, mas o máximo que conseguiu foi a resposta automática, baseada na própria experiência do homem: a senhora tem uma opinião, eu tenho a minha.
Então lembrei-me do arrastão de Carcavelos. O arrastão que não houve, mas que foi noticiado como verdade e com escândalo. Uma história desmontada num breve documentário que se tornou famoso.
Tudo começou com a denúncia do dono de um restaurante à beira da praia, que, assustado com a afluência de negros naquele feriado de 10 de junho, alertou a polícia. “Uma concentração anormal de negros”, diz-se a certa altura do filme.
O denunciante era também oriundo de uma ex-colônia africana. O tumulto que se instalou na praia quando a polícia chegou ocupou o noticiário por dias seguidos, assanhou os líderes partidários de direita e impulsionou a manifestação fascista já programada para aquele fim de semana mas que, antes disso, não prometia reunir tanta gente orgulhosa de ser “descendente de Afonso Henriques”, de não ter obtido seus documentos “no Martim Moniz”, que desejava despachar os africanos “para a terra deles”, que exigia “Portugal para os portugueses” e que erguia o braço direito sem pretender justificativas tortas: não foram mal interpretados, não estavam apenas a acenar a correligionários.
Grupelhos, grupelhos, dizia-se então, como se diz agora.
Foi em 2005, mas já estava tudo ali.
Quando André Ventura conquistou sua vaga no Parlamento, logo na primeira tentativa, com sua recém-criada legenda espertamente batizada não com o nome de um partido mas com uma interjeição banal que qualquer um repete em momentos de raiva, era claro que ampliaria a sua influência. Ganhara popularidade como comentarista do Benfica na CMTV, o canal do popularesco Correio da Manhã, o mesmo que depois o apresentaria num “momento fofura” com sua coelhinha de estimação numa peça dedicada ao cuidado com os animais, notável peça de propaganda disfarçada de serviço público que, por tabela, exaltava o zelo dos policiais na proteção das pessoas.
Legitimado pelo voto, Ventura passava a ter um palanque oficial e o direito a participar de audiências com o primeiro-ministro e o presidente, a falar para a TV como qualquer outro deputado, em especial para a TV pública, submetida à fiscalização meticulosa e cotidiana de todas as forças partidárias. Recebia atenção especial nas manifestações que estimulava e espaço de sobra para adotar habilmente um comportamento ambíguo, que afirma uma coisa para logo em seguida negá-la e imediatamente vitimizar-se como alguém que teve seus gestos e palavras maldosamente distorcidos. João Miguel Tavares assinalou muito bem essa ambiguidade em artigo no Público de 30 de junho, na esteira da passeata em que Ventura lançaria sua candidatura à presidência, na linha de frente da faixa com a consigna recorrente de seu partido: “Portugal não é racista”. Ali faria o tal gesto que não, nunca, de maneira nenhuma representaria a saudação fascista. O articulista, porém, compara-o apenas a Trump, sem citar Bolsonaro, que segue a mesma cartilha.
Também em 30 de junho o mesmo jornal publicaria extensa entrevista com o autor de um livro sobre o Chega, que chamava de “direita anti-sistema”, e assumia o discurso do líder do partido tanto nessa definição quanto nas respostas: não, apesar de o programa partidário ser muito explícito nesses quesitos, nem Ventura nem o Chega eram xenófobos ou racistas, embora pudesse haver simpatizantes ou militantes com essas características.
Por que um jornal como o Público resolve dar espaço a um pesquisador que se comporta mais como um porta-voz do que como um analista, por que ajuda a divulgar o livro reproduzindo-lhe a capa em que o deputado aparece no púlpito do Parlamento como um respeitável tribuno, é dessas coisas que só uma compreensão distorcida e formalista do papel do jornalismo pode explicar.
Mas há um trecho nessa entrevista que merece ser relido à luz dos atuais acontecimentos. É quando a repórter pergunta se a normalização de discursos e comportamentos preconceituosos incentivaria atos violentos contra ciganos, afro-descendentes, LGBT e militantes de esquerda. A resposta, como tantas outras, é dúbia: alguns dizem que sim, outros dizem que não, pelo contrário, pois um partido de direita radical com representação parlamentar, como até então não existia no país, ofereceria um espaço institucional para essas manifestações e cortaria o ímpeto das ações de rua. “Não acho que [o surgimento do Chega] corresponda a um aumento de violência”, diz o entrevistado. Como se a incitação à violência fossem apenas palavras. Como se palavras fossem apenas palavras e não produzissem coisas.
Então a violência começa a aumentar. Em fins de julho, o assassinato do ator negro Bruno Candé por um idoso ex-combatente da guerra colonial, que o teria ofendido repetidamente com o mesmo rancor dos que não se conformaram com o fim do que lhes restava do império, detonou uma série de protestos antirracistas e a reação imediata do Chega. Até que agora ocorreram a manifestação de mascarados empunhando tochas, à moda da Ku Klux Klan, e as ameaças anônimas a deputadas e militantes antirracistas.
“Ah, gente, não é nada!”, publicou Bruno Antunes no Facebook, aproveitando uma charge em que um grupo de pessoas vê um objeto emergindo do chão e uma delas diz às demais essa frase, menosprezando o achado, sem perceber que se trata da ponta de um dos braços de uma gigantesca suástica oculta no subsolo. Com esse mote irônico, Bruno vai relacionando a sequência de agressões protagonizadas desde janeiro por Ventura e seus simpatizantes contra negros, ciganos, refugiados, até culminar nos fatos mais recentes.
Em um dia, o post teve 3,5 mil curtidas, 5,8 mil compartilhamentos e 2,3 mil comentários, muitos deles carregados de ódio ou ironia. Alguns, curiosamente, recordando o episódio de Carcavelos, o tal arrastão que nunca houve, mas que ficou na memória daquelas pessoas como o contrário do que foi.
O post citava apenas os principais fatos noticiados, mas há vários outros relatados por associações de defesa de direitos civis que demonstram a existência de uma crescente ação intimidatória articulada da extrema-direita. Alguns tiveram pouca repercussão, outros sequer foram denunciados.
Denunciar ou não é sempre um dilema nesses casos, porque a denúncia dá a esses grupos a visibilidade pretendida, mas o silêncio costuma ser pior, porque nem por isso eles deixam de agir, e não serão contidos se forem ignorados. O problema principal é o contexto que faz emergir essas organizações. Como escreveu Florestan Fernandes tempos atrás, o fascismo foi derrotado na Segunda Guerra Mundial mas, como realidade histórica, não perdeu “nem seu significado político nem sua influência ativa” e, “como ideologia e utopia, persistiu até hoje, tanto de modo difuso quanto como uma poderosa força política organizada”.
“Hoje” era o início da década de 1970, mas o quase meio século decorrido não alterou as bases da análise e, por desalentador que seja, não é difícil perceber que o atual recrudescimento do fascismo resulta de uma reestruturação do capitalismo que degradou profundamente as condições de trabalho e vem desacreditando a democracia representativa. Já se vislumbrava uma nova grande crise financeira mundial quando surgiu a pandemia, que instaurou um ambiente de insegurança e ansiedade inéditos. Lideranças fascistas surfam essa onda com muita competência, excitando emoções que em outros momentos ficavam adormecidas, mas nunca deixaram de estar ali.
Até agora Portugal parecia orgulhar-se de ser uma exceção em meio à avalanche retrógrada que se espalhava pelo mundo. Tantas décadas de democracia depois da longa ditadura podem ter levado a alguma acomodação, à confiança excessiva no funcionamento das instituições e na irreversibilidade de certas conquistas, embora, na vida cotidiana – na relação entre vizinhos, no ambiente de trabalho, mesmo numa prosaica viagem de táxi –, se vão repetindo e agravando manifestações de ódio, discriminação e intolerância. Faz-se vista grossa, olha-se para o lado, empurra-se com a barriga, não é nada, não é nada, não é nada, até que os preconceitos entranhados nas profundezas da alma se sentem à vontade para descartar suas máscaras e dar a cara em toda a sua brutalidade. Será que finalmente se vai perceber a hora de dizer... chega?