'Ainda estou aqui' e 'tire-me desse horror'
Raul Amaro foi morto sob tortura dentro do Hospital do Exército, onde estava após sofrer... tortura. "Não houve tempo de inquiri-lo sobre tudo", disse uma figura repetida da morte de Rubens Paiva.
Raul Amaro Nin Ferreira foi preso, sequestrado pela ditadura, na madrugada do dia 1º de agosto de 1971, na Zona Sul do Rio de Janeiro, pouco mais de seis meses após a ditadura sequestrar Rubens Paiva na Zona Sul carioca também. O ex-deputado e engenheiro Paiva, que participava de uma rede de apoio a militantes exilados, foi sequestrado no Leblon. O também engenheiro Amaro, que participava de uma rede de apoio ao MR-8, foi sequestrado nas Laranjeiras.
Entre a noite de 1º de agosto e a madrugada do dia 2, Raul Amaro foi “bastante espancado e amedrontado”, nas palavras de uma testemunha, por agentes do DOI do 1º Exército, em local incerto. Na tarde do dia 3 de agosto, ele foi submetido a nova sessão de espancamento, que se estendeu até a madrugada do dia 4. Isso já na sede do DOI, na Tijuca, mesmo local onde Rubens Paiva foi assassinado sob tortura.
Após 4 dias de seviciamentos, Raul Amaro foi levado para o Hospital Central do Exército (HCE), em Benfica. Entre os dias 11 e 12 de agosto de 1971, Amaro foi espancado até a morte dentro do hospital por agentes do DOPS autorizados pelo comandante do 1º Exército, general Sylvio Frota, via ofício encaminhado à direção do HCE pelo chefe do Estado Maior do 1º Exército, general Bento José Bandeira de Mello.

No dia 12, Frota recebeu do comandante do DOI do 1º Exército, o à época major José Antônio Nogueira Belham, o seguinte “Relatório Sumário da Seção de Análise”:
“O marginado declara aliado do MR-8; em nosso entender, pelo material encontrado em seu poder e pelos laços que mantém com Eduardo Lessa Peixoto de Azevedo, Raul Amaro é militante da Organização com vida legal. Não houve tempo para inquiri-lo sobre todo o material encontrado em seu poder”.
“Não houve tempo para inquiri-lo”, disse, pisando distraído nos astros - nos dedos, nas pernas, nos ossos, no cadáver de Raul Amaro - o então major Belham. Trata-se do mesmo militar que, seis meses antes, conforme apurado pela Comissão Nacional da Verdade, tinha sido informado por agentes sob seu comando que Rubens Paiva não resistiria à tortura e, no entanto, deixou que matassem Rubens Paiva.
No relatório final da CNV, o nome de José Antônio Nogueira Belham, hoje general reformado, aparece em nada menos que 14 identificações da autoria de mortes e desaparecimentos na ditadura. Em 2014, o general Belham foi denunciado pelo Ministério Público Federal e virou réu na Justiça Federal do Rio, junto com outros quatro militares, pelo assassinato de Rubens Paiva.
“Mataram Rubens Beyrodt Paiva - diz a denúncia do MPF - por motivo torpe, consistente na busca pela preservação do poder usurpado em 1964, mediante violência e uso do aparato estatal para reprimir e eliminar opositores do regime e garantir a impunidade dos autores de homicídios, torturas, sequestros e ocultações de cadáver”.
O caso Rubens Paiva está praticamente parado no STF desde então. Estava: agorinha, após o sucesso do filme “Ainda estou aqui”, a egrégia corte finalmente deu andamento a este e outros processos que podem levar a uma reinterpretação da Lei da Anistia. Enquanto isso, o general Belham, que está bem vivo, vive bem no bairro do Flamengo, no Rio - na Zona Sul do Rio, de tantos assassinatos e desaparecimentos cometidos pela ditadura -, ganhando R$ 36 mil brutos por mês.
No último 24 de fevereiro, ativistas da organização Levante Popular da Juventude foram para a frente do prédio onde vive o general para escrachar o impune. Na frente da casa do impune, disseram em alto e bom som: “Nós não nos esquecemos. Nós não perdoaremos. A Lei da Anistia não pode encobrir crimes contra a humanidade. Nós exigimos justiça para Rubens Paiva e para todas as vítimas da ditadura. Nós ainda estamos aqui”.
Em 2003, a esposa de José Antônio Belham, Maria de Fátima Campos Belham, foi assessora parlamentar no gabinete do então deputado Jair Bolsonaro na Câmara, gabinete onde anos depois, com ajuda de algum assessor parlamentar, Bolsonaro viria a fixar um cartaz alusivo à busca pelos desaparecidos da ditadura: “quem procura osso é cachorro”.
Anos atrás, no governo Dilma, o filho de José Antônio Belham, Ronaldo Martins Belham, um remanescente do SNI, chegou a ocupar o posto de diretor-adjunto da Abin. No Portal da Transparência do Governo Federal, Ronaldo Belham, a pessoa física, aparece como favorecido de uma emenda parlamentar no valor de R$ 113,6 mil de autoria da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência. A emenda foi liberada em 2020, no governo Bolsonaro.
Quanto à identificação da autoria do assassinato de Raul Amaro, chama a atenção, entre os outros seis militares apontados pela CNV, além de José Antônio Nogueira Belham, o nome do general que dirigia o Hospital Central do Exército - o general que cumpriu a ordem de Sylvio Frota para deixar que os dois carniceiros do DOPS entrassem no hospital.
O nome é este: Rubens do Nascimento Paiva.

Na verdade, o nome do general está grafado incorretamente no relatório da CNV: é nome correto é Ruben, não Rubens.
A diferença é um “s”, de “sem anistia”, nem para os golpistas de hoje, nem para os agentes da ditadura.
O mais torpe dos motivos
“Ainda estou aqui”, disse Eunice Paiva, viúva de Rubens Paiva, aos filhos, num momento de lucidez, enquanto morria aos poucos com Alzheimer. “Tire-me desse horror”, disse Raul Amaro a um enfermeiro antes de morrer trucidado no hospital do general Ruben Paiva, que “apenas” cumpria ordens.
A súplica deste outro engenheiro assassinado pela ditadura no Rio de Janeiro em 1971, aquela súplica - “tire-me desse horror” - ecoa até hoje, neste país, e só será verdadeiramente atendida quando os torturadores, assassinos e ocultadores de cadáveres forem responsabilizados pelos crimes contra a humanidade que cometeram pelo mais torpe dos motivos: a “busca pela preservação do poder usurpado em 1964”.