Alegria, alegria
Retomada do entusiasmo e da esperança marcou as manifestações contra a bandidagem da extrema-direita. Agora é trabalhar para que essa onda não vire espuma.

A primeira afronta, e certamente o primeiro erro, foi desfraldar a bandeira norte-americana no Dia da Independência, na Avenida Paulista. Deveriam ter percebido que mexer com o vínculo de pertencimento ao torrão natal desperta reações emocionais muito fortes, já evidentes no aumento de apoio a Lula diante das sanções impostas por Trump como forma de constranger o governo e o STF no julgamento de Bolsonaro.
A segunda afronta, em dose dupla, foi a aprovação da PEC da Bandidagem e, na sequência, da votação em regime de urgência do PL da Anistia. Numa tacada só, a maioria de deputados – a grossa maioria de direita e extrema-direita, mas apoiada por alguns representantes de centro-esquerda, inclusive 12 do PT, supostamente confiantes num acordo que fracassou – demonstrava estar determinada a fechar questão em torno da impunidade em causa própria: com a emenda constitucional, definia um acordo de compadres, ao determinar que apenas por deliberação do Congresso os parlamentares que cometessem crimes poderiam ser julgados. A aprovação da urgência para a votação do projeto de lei que anistia os envolvidos na tentativa de golpe de Estado – o que abrangia a massa de gente já condenada pelos ataques do 8 de janeiro mas também, e principalmente, Bolsonaro e os demais recentemente condenados pelo planejamento do golpe – tinha o mesmo sentido.
Pegou muito mal. Mesmo a grande imprensa, sempre tão zelosa no cultivo de um equilíbrio que lhe desse o insustentável verniz de imparcialidade quando está em causa a opção entre civilização e barbárie, escancarou o absurdo. Nas redes, a reação foi imediata e vigorosa, e provocou canhestros pedidos de desculpas por parte de deputados tanto do PT quanto de partidos de direita que votaram a favor daquela aberração. Logo se articulou um movimento de protesto. Mas permanecia a dúvida: uma manifestação convocada às pressas não correria o risco de fracassar?
O comparecimento maciço às ruas de praticamente todas as capitais e várias outras cidades do país neste domingo, 21, deu uma resposta que surpreendeu os mais otimistas. Ao longo do dia, multiplicavam-se os vídeos daquela massa de gente chegando, gritando “sem anistia!”, agitando bandeiras, exibindo faixas e cartazes, num entusiasmo que há muito tempo não se via. A imagem mais simbólica foi produzida também na Avenida Paulista, com a enorme bandeira brasileira estendida sobre a multidão em frente ao MASP, contrastando com a cena vergonhosa de subserviência produzida pelos bolsonaristas duas semanas antes.
Foi a imagem de um divisor de águas: de um lado estavam os traidores da pátria, de outro os verdadeiros patriotas, no sentido mais elementar de pertencimento ao lugar onde se nasceu e/ou onde se vive, e que assumem o dever de rechaçar ameaças externas de dominação.
“Para salvar Bolsonaro, os fascistas queimaram o capital simbólico deles: o patriotismo”, comentou a jornalista Ana Lagoa, que testemunhou o que se passou em São Paulo: os PMs vestidos e munidos de um aparato como se fossem para uma guerra, ostensivamente ameaçadores, os carros da Guarda Municipal que num dado momento obrigaram as pessoas a abrir passagem, indícios evidentes de provocação que, se aceita, garantiria manchetes sobre violência e desvirtuariam o sentido da manifestação. “Eles foram vaiados, mas ninguém estava ali pra arrumar confusão. Valeu a pena ver o povo lá, feliz. E aqui não tinha show de artista, né? O momento mais emocionante foi quando passou a bandeira, todo mundo chorando, aplaudindo, foi muito lindo esse resgate da bandeira, pessoas usando a bandeira na roupa, na cabeça, muita bandeira brasileira”.
Ana falou de seu encontro com um velhinho muito idoso, acompanhado da mulher, que lhe disse que tinha estado lá em 64 para se opor ao golpe e agora retornava, e de um homem que tinha tirado seu título de eleitor aos 16 anos para dar “seu primeiro voto”, recordando a música de campanha da primeira candidatura de Lula, em 89. Percebeu a diversidade do público, diferente de outras manifestações. “O que tinha de gente ali sem filiação a qualquer partido ou movimento, que estava ali apenas por uma causa justa... e o mais interessante é que essa causa justa foi proporcionada pelos inimigos. Os cretinos que se acham superinteligentes, espertos, acima do bem e do mal, deram pra gente a causa que a gente demoraria vinte anos pra construir, na base, no trabalho na periferia... Deram de mão beijada pra gente”.
Talvez tenha sido mesmo este o diferencial: a percepção do que é uma causa justa, que leva pessoas comuns a saírem de casa para protestar. O que reitera a dificuldade de se demonstrar a justeza de outras causas, relativas a direitos fundamentais, mas que não são percebidas dessa maneira ou não são vistas como importantes.
O bibliotecário Ricardo Queiroz, doutorando em Ciências Humanas e Sociais na UFABC, também notou essa mudança no perfil do público, em comparação com outras manifestações. Em sua página no Facebook, escreveu: “o que aglutinou alguma diversidade na avenida — ainda sob liderança da esquerda, progressistas e liberais — foi a PEC da Pilantragem. Pautas morais têm força de mobilização. Não há defesa possível dessa PEC, mas o fato é que a antipolítica e o moralismo arrastam mais gente para a rua do que tentativas de golpe de Estado ou outras formas explícitas de violência política”.
Em seguida, apresentou uma possível explicação para o comparecimento que superou expectativas e apontou a necessidade de politizar a mobilização, para que não se perca ou, pior ainda, se inverta o rumo: “A ciência política já mostrou que crises morais e escândalos funcionam como gatilhos imediatos de engajamento social. São bandeiras fáceis de entender, com apelo emocional direto, diferentes de processos estruturais mais complexos como erosão democrática, captura do Estado ou golpes constitucionais. Esse tipo de mobilização tem potência, mas também limites: se não for politizado, vira espuma, perde fôlego e pode ser instrumentalizado pelas mesmas forças que geraram o problema”.
A cobertura da grande imprensa, que de modo geral investiu na comparação entre esta manifestação e a da extrema-direita no 7 de Setembro, conferindo-lhes números semelhantes – em torno de 42 mil pessoas, tanto em São Paulo quanto no Rio, segundo o Monitor do Debate Político do Cebrap, em parceria com a ONG More in Common, sem considerar o cenário nas demais cidades – recebeu muitas críticas nas mídias sociais. O livreiro José Carlos Augusto Ferreira lembrou-se da capa da Folha de S.Paulo do dia seguinte ao comício da campanha das Diretas Já na capital paulista, em 25 de abril de 1984, aniversário da cidade:
“A Matemática criativa consegue espremer 300 mil pessoas em 47 mil² (área da Praça da Sé), mas não consegue concatenar mais que 42 mil nos 60 mil m² da Av. Paulista (são 1.500 metros da Brigadeiro à Augusta, e pelo menos 40 metros de largura). Muita coisa a comentar, mas me atenho a isto: à burguesia paulista representada pela Folha interessou conclamar o povo a lotar as praças e ajudar a transição marota em 1985, e 40 anos depois não convém ao ‘jornal a serviço do Brasil’ enjaular os responsáveis por quatro anos de descalabro civilizatório, nem punir os pilantras do Orçamento Secreto e da Faria Lima”.
Também no Facebook, o jornalista Mauro Ventura comentou sobre a manifestação de Copacabana:
Contar o número de participantes de um protesto sempre foi um desafio. A Polícia Militar costuma chutar um número ridiculamente baixo, enquanto os organizadores citam um volume exageradamente alto.
Os dados científicos vieram para solucionar o dilema e permitir que os veículos de imprensa possam cravar: a manifestação reuniu 41,8 mil pessoas. Fim da discussão.
Ou não. Leio que o auge de público foi às 16h. Nessa hora é que estariam reunidos os tais 41,8 mil manifestantes. Só que, nesse momento, várias pessoas já tinham ido embora. Haviam chegado cedo – às 14h, como eu – e, por causa do calor, do cansaço e de outros compromissos, tiveram que deixar o ato. Mas nem por isso deixaram de estar presentes, gritar “Sem anistia!”, carregar cartazes contra a “PEC da Bandidagem” e defender o Brasil Soberano.
Além disso, às 16h, muita gente ainda não havia chegado, como era o caso de minha mulher e de meu filho, que vieram um tempinho depois. Ao longo das cinco horas de protesto, entre 14h e 19h, milhares de pessoas circularam pela manifestação, num ir e vir, um número imensamente maior do que os 41,8 mil registrados naquela hora específica.
Ou seja, me parece que o levantamento acaba subdimensionando enormemente o público que vai a um protesto – seja ele qual for – e adicionando uma nova camada de confusão.
À parte esses argumentos, imagine-se o que poderia ter acontecido se a Globo tivesse convocado essas manifestações como fez com as que pediriam o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016.
Considerar tudo isto é muito importante, mas no momento o fundamental é soltar esta palavra presa na garganta: afinal destravamos, recuperamos as ruas, com a vibração e o vigor que haviam ficado para trás. O contraste entre a bandeira americana e a brasileira na Paulista, símbolo mais expressivo do que está em jogo, corresponde ao contraste entre os dois cenários: nada daqueles discursos babando de ódio, nada daquelas faces crispadas e ameaçadoras. Pelo contrário: clima de festa, empolgação, confiança na vitória sobre essa gente.

Em especial para os mais velhos, o que ocorreu no Rio fez transbordar a emoção e despertou sentimentos contraditórios. Ver nossos octogenários artistas, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, e o quase octogenário Djavan, no palco à beira da praia, vestidos com camisas com as cores da bandeira brasileira, entoarem canções que marcaram o tempo de resistência à ditadura, provoca nostalgia, confiança, mas também angústia. Um pouco como na frase do cartaz empunhado por uma senhora, que acabou virando meme: “I can’t believe I still have to protest this fucking shit”.
É inacreditável, mas é verdade: as canções de mais de meio século atrás continuam atuais, porque a ameaça do fascismo nos ronda o tempo todo, e vem se intensificando no momento atual, um pouco por toda a parte.
Por isso é preciso afastar esse cale-se, é preciso estar atento e forte, é preciso repetir que apesar de você amanhã há de ser outro dia.
Mas agora com a esperança renovada – essa velha esperança que não pode morrer – diante da retomada das ruas, com o entusiasmo que contagiou a multidão neste domingo.
Caminhando contra o vento.
Alegria, alegria.
Pro dia nascer feliz.