Aluga-se vaga em quarto compartilhado com tudo incluído... menos o banheiro
Anúncio exposto pelo jornal Público revela o grau de descalabro da crise na habitação em Portugal. Neste fim de semana, milhares se manifestaram em várias cidades do país.
“É só você fazer cocô dia sim, dia não, que melhora bastante a nossa vida”.
Quem não se recorda dessa resposta de Bolsonaro a uma pergunta sobre o enfrentamento da poluição ambiental, seis anos atrás, ainda no início de seu mandato? Terá sido essa a fonte inspiradora de quem resolveu anunciar o aluguel de uma vaga num quarto em Lisboa, com “tudo incluído” – água, luz, gás, internet –, menos... a “casa de banho”?
O jornal Público, que reproduziu o anúncio numa reportagem deste sábado, 28 de junho, sobre a crise habitacional em Portugal, deu os detalhes, ao pedir esclarecimentos à anunciante: trata-se de uma casa de vila, com quatro construções semelhantes, cada qual com dois quartos, “antigas” – o que pode ser o eufemismo para “velhas”. Em três delas vivem rapazes que sublocam quartos compartilhados. A casa de banho fica do lado de fora, no quintal – a famosa “casinha”, como se chama no Brasil, em áreas periféricas ou rurais onde não há rede de esgoto ou água encanada. Os inquilinos têm acesso à cozinha, mas não à zona de lavanderia, que inclui o banheiro.
Nesse “ambiente tranquilo, limpo e respeitador, ideal para quem trabalha e precisa de um lugar calmo”, na região “simples” da Ajuda, a vaga no quarto dividido com outro rapaz trabalhador custa 225 euros (cerca de R$ 1.450, ao câmbio atual). Caso o inquilino deseje ou precise fazer suas necessidades matinais (e também noturnas) no local, terá de desembolsar 7,50 por dia. O que, ao fim de um mês, totaliza mais 225 euros, se o mês for de 30 dias. Portanto, exatamente o preço pedido pelo aluguel que inclui tudo menos o fundamental requerido para se viver numa cidade dotada de saneamento básico. Donde se conclui que, para alojar-se com um mínimo de decência – mesmo sem considerar o número de moradores dessas quatro casas de dois quartos sublocados e apenas um banheiro do lado de fora nessa vila de construções “antigas” –, o candidato a essa vaga terá de desembolsar 450 euros (ou R$ 2.900) por mês.
Exagero? Talvez, mesmo diante do descalabro a que chegou a situação da moradia em Portugal, onde, segundo o Instituto Nacional de Estatística, nos últimos sete anos – entre o primeiro trimestre de 2018 e o primeiro trimestre de 2025 –, o preço dos imóveis quase dobrou e o dos aluguéis aumentou em média cerca de 80%, contra um aumento salarial bruto de 36%. A reportagem do Público informa que, nos portais imobiliários mais populares, como o Imovirtual ou o Idealista, “há milhares de anúncios, sobretudo em Lisboa, para arrendamento de camas em quartos partilhados. São os preços mais baratos que se encontram nestes portais: acima dos 200 euros por uma cama em quartos que chegam a acomodar seis pessoas ou mais”. Já os anúncios dirigidos para os chamados “nômades digitais”, escritos em inglês e oferecidos por empresas de arrendamento de médio prazo, pedem até quase 2 mil euros pelo aluguel de um quarto com banheiro privativo numa casa que pode acomodar nove pessoas.
Diante desse quadro, o especial talento publicitário de quem anunciou, num grupo que reúne ofertas de aluguel de vagas no Facebook, aquela vaga de vila na Ajuda com “tudo incluído” menos o essencial apostou em atrair quem não saiba fazer contas elementares ou que considere possível resolver suas necessidades fisiológicas de outra forma. Afinal, o anúncio não diz nada sobre o convívio com pessoas que exalam os odores típicos de quem economiza no banho, ainda mais no atual calor lisboeta que desmoraliza o clássico Rio, 40 graus, de Nelson Pereira dos Santos, aliás censurado na época – meados dos anos 50 – sob o argumento de que na cidade a temperatura nunca chegara a esse ponto.
Tampouco diz algo sobre o uso de urinóis. Poderia ser uma sugestão para economizar, melhor que a de Bolsonaro, de fazer cocô só eventualmente, até porque o xixi é inevitável e, no caso dos rapazes de fino trato objeto do anúncio, seria uma forma de manter a compostura e não os estimular a se aliviarem atrás de árvores ou postes. Bastaria acumular tudo numa bacia embaixo da cama e na manhã seguinte despejar o conteúdo em tonéis para serem despachados para algum lugar mais apropriado. Um pouco à maneira dos tempos do Brasil imperial, quando a maioria das casas não tinha instalações sanitárias e recorria ao serviço de escravos que recolhiam aqueles dejetos para os despejarem no mar ou em algum rio próximo, e eram chamados de “tigres” porque parte do conteúdo vazava e deixava listas esbranquiçadas sobre a pele negra.
Já vivemos assim. Qual o problema? Se estamos retrocedendo tão rapidamente em relação ao que pensávamos ser conquistas civilizatórias garantidas, por que não?
Afinal, ter um teto, mesmo sem banheiro, é melhor que catar comida entre detritos, na imundície do pátio, e a engolir vorazmente, sem nem a examinar ou cheirar. Melhor que ser esse bicho que não era um cão, nem um gato, nem um rato, meu Deus, era um homem, e impressionou o poeta que o observava da janela de seu apartamento, no centro da cidade, no Rio de Janeiro dos anos 40.
Sempre há um degrau a mais a descer na escala da indignidade, não é? Por isso tanta gente se sujeita ao que é degradante e se agarra ao que é inaceitável, imaginando que poderia ser pior.
Por isso tanta gente se conforma.
Ou não.
No mesmo dia em que o Público destacou esse anúncio do aluguel da vaga que cobrava pagamento à parte pela casa de banho, milhares de pessoas foram às ruas em várias cidades do país, para protestar contra esse estado de coisas, exigir medidas que interrompam o processo de especulação imobiliária e garantam condições justas de moradia. Foi pouco, considerando a gravidade do problema, mas foi importante inclusive porque, pelo menos momentaneamente, alterou a ênfase da pauta na questão da imigração, que tem dominado a agenda política e midiática há meses.
Foi importante também porque produziu cenas que, também momentaneamente, romperam com o jornalismo amestrado que prevalece nas televisões portuguesas: em Lisboa, repórteres entrevistavam o secretário geral do PCP, Paulo Raimundo, quando uma mulher irrompeu aos gritos e os microfones se viraram para ela, que protestava contra o despejo iminente, e que logo depois se voltou para o político, o abraçou e exclamou, “camarada!”, e assim ficaram longos segundos e quando ela foi embora ele recompôs seu discurso e disse o que tantas vezes já foi dito: que não se trata de números, mas de pessoas.
Pessoas como a senhora idosa e baixinha, cheia de rugas mas com brilho nos olhos, a dizer que enquanto tiver pernas que lhe permitam andar ela irá a todas as manifestações, porque sabe o que sofreu durante a vida e sabe o que agora esses jovens que não têm casa estão a sofrer.
É talvez a melhor imagem da necessidade de se continuar a lutar, apesar de tudo. Porque, se algum dia todos vamos morrer, que seja a lutar por dignidade, e não a nos curvar à capitulação que antecipa o fim inevitável. Não é possível que se aceite tamanha degradação sem resistência. Por isso é tão importante recuperar a pergunta essencial que todos deveríamos fazer todos os dias: em que mundo queremos viver? É essa pergunta, essencialmente ética, que precisaríamos adotar como um mantra. É a resposta a essa pergunta que nos pode levar a enfrentar as bases da política que impõe tamanha degradação e a retomar o entusiasmo na luta por um futuro comum.