Atirar pedras aos zucas, cortar as cabeças dessa 'raça maldita'
Da "brincadeira” na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa ao convite à decapitação no TikTok, em apenas seis anos.
No fim de abril de 2019, no período de eleições para a Associação Acadêmica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, um caixote de madeira instalado no saguão, contendo pedras e a inscrição “Grátis se for para atirar a um ‘zuca’ (que passou à frente no mestrado)”, tornou-se um símbolo da xenofobia já há tanto tempo denunciada, e não só nos meios estudantis.
Era só uma brincadeira, desculpou-se o grupo responsável pela iniciativa, que visava a expor o descontentamento dos estudantes portugueses diante de uma situação que favorecia os brasileiros, pois vinham com notas melhores do Brasil, onde o critério de avaliação seria menos rigoroso.
Diante da repercussão, o caixote foi logo retirado do local, o reitor da universidade prometeu instaurar processo disciplinar, mas a imagem continuou a ser reproduzida em reportagens que tratavam da xenofobia em Portugal. Porque, evidentemente, não era só uma brincadeira.
“Quando eu fui questionar, disseram que era uma piada”, argumentou a estudante brasileira que se insurgiu contra aquela intervenção. “E eu respondi que piada é só quando todos riem. Eles falaram que é normal, que ‘mexem’ com todo mundo, que o ano passado foram os muçulmanos o alvo das piadas. Para mim é muito estranho a faculdade permitir que um grupo que faz sátira desse tipo se reúna dentro da faculdade ou que monte um ‘stand’ no átrio, dado o momento que estamos a viver. Acho que esse tipo de piada não é tolerável, pode ser uma faísca para uma coisa muito maior. Estamos a viver tempos de extremos. Só cheguei às duas da tarde, mas eles já lá estavam desde manhã e ninguém tinha feito nada”.
O momento que estávamos a viver: foi justamente em abril de 2019 que o Chega, partido de extrema-direita, formalizou seu registro e já naquele ano elegeria seu líder para o Parlamento. Dali em diante, cresceria de maneira avassaladora: passou para 12 representantes em 2022, dois anos depois para 50 – coincidentemente, no cinquentenário da Revolução dos Cravos – e, este ano, conquistou 60 vagas, tornando-se a segunda força na Assembleia da República.
Quem sabe é isso que leva uma pessoa a sentir-se perfeitamente à vontade para gravar um vídeo em que oferece 500 euros a cada português que lhe trouxer a cabeça de um brasileiro, “desses zucas que vivem aqui em Portugal”, não importa se “legais ou ou ilegais”, “cortada rrrrrrente no pescoço”. Pois, “já que é pra esculhambar os portugueses, atão o português tem também que começar a usar as mesmas armas para esculhambar os zucas, essa rrrrraça maldita”.
A gravação foi feita no interior de um carro, e a câmera, de baixo para cima, realçava os atributos do sujeito, que vestia uma camisa da seleção portuguesa: sua papada transbordante, seus dentes desalinhados.
O vídeo começou a circular no fim da semana passada e, nos comentários, muitos optaram por ridicularizar a figura: aquela exortação só podia ser inveja de quem tinha pescoço; o difícil, fosse ele o alvo, seria achar onde cortar... certamente se tratava de alguém que não tinha medo da polícia; já do dentista... e sempre seria possível dizer que, afinal, já saberíamos quanto valemos: 500 euros. Não é lá grande coisa, mas é como escreveu certa vez o Luís Fernando Veríssimo: todo homem tem seu preço, e é preciso saber quanto valemos, até para podermos dizer não ao assédio da corrupção.
Porém não seria possível reagir apenas com gozações a uma agressão desse calibre. No início da semana, um grupo de advogados denunciou o homem ao Ministério Público de Portugal pelo crime de ódio, com incitação à violência extrema. A padaria onde ele trabalhava, num município de Aveiro, anunciou que o demitiu e divulgou nota de repúdio a “qualquer forma de racismo”, assegurando que continuaria “de portas abertas para vos receber sempre com respeito e carinho”.
Curioso é que as reportagens sobre o fato informem apenas as iniciais do homem (J. P. S. O.) e borrem a imagem do vídeo que ainda está perfeitamente acessível e onde ele aparece de cara limpa.
É claro que uma figura dessas deveria ser presa e receber outras sanções, diante da gravidade do fato. Se isso ocorrerá ou não, vai depender da Justiça portuguesa – e da pressão que os movimentos antifascistas possam fazer.
A caixa com pedras para atirar aos “zucas” na Faculdade de Direito em Lisboa não foi o primeiro caso em que a xenofobia se disfarçou de piada, mas a repercussão que alcançou na época deveria ter servido de alerta para o que estava por vir. Uma “brincadeira” aqui, um comentário mais enfático ali, e temos a faísca para algo muito maior: avoluma-se a disseminação de falsidades que vinculam os estrangeiros (pobres, bem entendido) ao crime, intensifica-se o discurso xenofóbico e de exaltação aos “portugueses originários”, e de repente alguém vestido com as cores da pátria em chuteiras se sente livre para destilar o ódio e incitar ao crime numa escala que só a internet descontrolada poderia proporcionar.
Como dizem os portugueses, isto não pode ser.