Augusto Góngora, Augusto Heleno
"Como esquecer?"
“Eu soube que um amigo meu, José Manuel Parada, tinha sido sequestrado. Peguei um jornal argentino e, ao abrir, as duas páginas diziam: ‘apareceram degolados’, e a foto do meu amigo. Eu nunca, nunca tinha passado por algo assim tão forte. Nunca tinha sentido tanta dor”, disse o jornalista chileno Augusto Góngora, em depoimento a um colega, anos antes de começar a sofrer do mal de Alzheimer.
Anos depois, quando Góngora já sofria de Alzheimer e já sofria para lembrar de qualquer coisa, sua companheira, a atriz Paulina Urrutia, perguntou a ele enquanto assistiam a vídeos do golpe contra Allende e da ditadura de Pinochet: “você lembra do José Manuel?”. Apesar da doença, Góngora não hesitou nem por um segundo: “José Manuel Parada? Como esquecer?”, e emocionou-se, e começou a chorar.
Um pouco da história de Augusto Góngora e Paulina Urrutia e de como enfrentaram o Alzheimer de Góngora foi contada no documentário A memória infinita, de Maite Alberdi. De um lado, a demência inexorável; do outro, a memória interminável de como Góngora desafiou Pinochet com jornalismo de verdade, com suas inesquecíveis reportagens no programa Teleanálisis. Reportagens como “Natal nas favelas: o outro papai noel”, de 1984:
“Após os primeiros dez anos da ditadura no Chile, a dura repressão e a perseguição política foram agravadas por uma grave crise econômica, exacerbada pela implementação de um modelo neoliberal que deixou milhões de chilenos desprotegidos, aumentando drasticamente o empobrecimento da classe trabalhadora. No entanto, para muitas famílias organizadas, as difíceis circunstâncias que enfrentavam não eram obstáculo para celebrar o Natal juntas, proporcionando um momento de alívio e alegria para as crianças das favelas”.
Cinco anos depois, em 1989, disse um ainda jovem Augusto Góngora no lançamento do seu livro A memória proibida:
“Acreditamos que é muito importante reconstituir a memória. Não para ficarmos ancorados no passado. Reconstituir a memória é sempre um ato voltado para o futuro. É sempre uma tentativa de ver a si mesmo, reconhecer os problemas e nossas fragilidades, para sermos capazes de superá-los e poder enfrentar, generosamente, o futuro. Não basta que a reconstituição da memória seja um ato meramente racional. Não bastam os números e as estatísticas. Eu acredito que nós, chilenos, precisamos reconstituir também nossa memória emocional. Porque esses anos foram tão difíceis, tão traumáticos, tão cheios de dor, que também precisamos recuperar nossas emoções, assumir as dores, elaborar nossas mágoas”.
Quem assistiu ao documentário, que é terrível e maravilhoso ao mesmo tempo, e assistiu nesta terça-feira, 23, às imagens de um xará de Góngora — e de Pinochet —, o general Augusto Heleno, indo para casa passar o Natal e o resto da pena por motivo de Alzheimer inicial — e providencial —, isso menos de um mês depois de generais golpistas finalmente serem presos no Brasil; quem assistiu ao doc e ao deboche terá náuseas e dificuldades para seguir acreditando, digamos, no Natal.
“Quem tem memória, tem coragem”, escreve Góngora na dedicatória a Pauli num exemplar de A memória proibida.
Come Ananás volta em janeiro, porque seguimos acreditando.
Até já.




