Brevíssima história naval do sionismo
Ninguém morreu por causa do ataque de sexta à Flotilha da Liberdade, tirando algumas das 290 mil crianças que na sexta estavam à beira da morte por fome em Gaza, por causa do bloqueio do sionismo.
Na última sexta-feira, 2, o navio Conscience, que integra uma frota carregada com ajuda humanitária para a Faixa de Gaza, foi atacado por drones no meio do mar Mediterrâneo, no meio da madrugada. O ataque causou um incêndio no navio, que foi controlado com ajuda de um barco-patrulha do Chipre. Quatro pessoas ficaram feridas. Os ativistas da Flotilha da Liberdade acusam Israel pelo ataque, feito em águas internacionais. A mídia internacional diz que eles “não apresentaram evidências que comprovem a alegação”.
No início de 1988, 130 membros da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) deportados por Israel após a eclosão da Primeira Intifada decidiram zarpar do porto de Limassol, no Chipre, para retornarem ao território ocupado da Faixa de Gaza. O barco da jornada, um velho ferry japonês chamado Sol Phryne, foi comprado de vésperas pela OLP, por US$ 600 mil, e rebatizado como Al-Awda, o Navio do Retorno. Mais de 200 jornalistas e políticos de todo o mundo embarcariam junto com os palestinos naquele aberto desafio ao sionismo.
Embarcariam.
Horas antes da partida, uma explosão abriu um buraco no casco do navio atracado. “Navio do retorno palestino sofre atentado”, estampou o jornal O Globo no dia seguinte, no alto da página 9 do caderno Mundo.
Contou assim o jornal O Globo do dia 16 de fevereiro de 1988:
“Um porta-voz da OLP disse dispor de provas de que o serviço secreto israelense, o Mossad, foi o responsável pelo ataque, cuja autoria foi, porém, reivindicada por dois outros grupos”.
“Em telefonema [anônimo] à agência de notícias grega ANA, a Frente de Salvação Palestina, facção rival da OLP, informou que o atentado foi um protesto contra a organização liderada por Yasser Arafat. Mas em outro telefonema, à filial da agência americana AP em Chipre, alguém que falou em nome da Liga de Defesa Judaica (LDJ) [ou seja, anônimo também], disse que o ataque foi ‘apenas uma advertência, pois se houver uma próxima tentativa (de realizar a viagem), a explosão será depois de todos estarem à bordo’”.
“A chancelaria de Israel negou-se a comentar as acusações da OLP, mas horas antes do atentado ao barco o ministro da Defesa, Yitzahk Shamir, assinalara: ‘o Estado de Israel decidiu que tem a obrigação de não permitir que (os palestinos) alcancem seu objetivo (de regressar), e que o fará com todos os meios possíveis’”.
Lá se vão 37 anos e Israel sempre negou, nunca admitiu envolvimento com o atentado ao Al-Awda.
Em 2011, os jornalistas investigativos israelenses Dan Margalit e Ronen Bergman finalmente elucidaram, em um livro lançado naquele ano, o mistério do atentado ao “Navio do Retorno”. Margalit e Bergman descobriram que o atentado ao navio palestino em 1988 foi obra do Mossad e do Shayetet 13, unidade de forças especiais da Marinha de Israel.
A informação já tinha sido adiantada por Ronen Bergman em artigo publicado em 2010 no Wall Street Journal:
“Horas antes da partida, o navio vazio foi explodido no porto de Limassol por uma equipe de agentes do Mossad e homens-rãs da Shayetet 13 (o equivalente israelense aos Navy Seals). A equipe era liderada por Yoav Gallant, então um jovem oficial e hoje um alto general do Exército de Israel. A operação foi um sucesso. Não houve vítimas de nenhum dos lados e a OLP desistiu da ideia de navegar para Gaza”.
O então jovem oficial Yoav Gallant, mais tarde general, agora mesmo foi o ministro da Defesa de Israel, chefe das “Forças de Defesa de Israel”, durante a maior parte da atual agressão genocida na Faixa de Gaza. Foi ele, Gallant, quem disse, ainda em outubro de 2023, que em Gaza não havia inocentes, que Israel estava em guerra contra “animais humanos”, que a Faixa de Gaza sofreria um “assédio total”, insinuando, declarando para quem quisesse ouvir que ninguém seria poupado.
Fica no campo de refugiados de Jabalia, no norte de Gaza, e chama-se Al-Awda, como o navio, um dos quase todos os hospitais da Faixa de Gaza atacados pelas “Forças de Defesa de Israel” desde outubro de 2023. O número de palestinos mortos em Gaza desde outubro de 2023 já se aproxima de 62 mil, incluindo mais de 17 mil crianças.
Há 15 anos, em 2010, em outro ataque de Israel a uma missão humanitária da Flotilha da Liberdade, o resultado foi sangrento e o Itamaraty, então sob Celso Amorim, divulgou uma nota condenando, “em termos veementes”, a ação israelense. Eis a íntegra:
Com choque e consternação, o Governo brasileiro recebeu a notícia do ataque israelense a um dos barcos da flotilha que levava ajuda humanitária internacional à Faixa de Gaza, do qual resultou a morte de mais de uma dezena de pessoas, além de ferimentos em outros integrantes.
O Brasil condena, em termos veementes, a ação israelense, uma vez que não há justificativa para intervenção militar em comboio pacífico, de caráter estritamente humanitário. O fato é agravado por ter ocorrido, segundo as informações disponíveis, em águas internacionais. O Brasil considera que o incidente deva ser objeto de investigação independente, que esclareça plenamente os fatos à luz do Direito Humanitário e do Direito Internacional como um todo.
Os trágicos resultados da operação militar israelense denotam, uma vez mais, a necessidade de que seja levantado, imediatamente, o bloqueio imposto à Faixa de Gaza, com vistas a garantir a liberdade de locomoção de seus habitantes e o livre acesso de alimentos, remédios e bens de consumo àquela região.
Preocupa especialmente ao Governo brasileiro a notícia de que uma brasileira, Iara Lee, estava numa das embarcações que compunha a flotilha humanitária. O Ministro Celso Amorim, ao solidarizar-se com os familiares das vítimas do ataque, determinou que fossem tomadas providências imediatas para a localização da cidadã brasileira.
A Representante do Brasil junto à ONU foi instruída a apoiar a convocação de reunião extraordinária do Conselho de Segurança das Nações Unidas para discutir a operação militar israelense.
O Embaixador de Israel no Brasil está sendo chamado ao Itamaraty para que seja manifestada a indignação do Governo Brasileiro com o incidente e a preocupação com a situação da cidadã brasileira.
Na última sexta, o brasileiro Thiago Ávila, coordenador internacional da Flotilha da Liberdade, gravou um vídeo a bordo de um dos navios da flotilha para denunciar o ataque, o ato de violação do Direito Internacional; para informar que faz dois meses que Gaza não recebe “uma única garrafa de água, um único carregamento de arroz ou de farinha”, no âmbito da limpeza étnica, do genocídio; para lembrar que “o Tribunal Penal internacional obrigou Netanyahu e Gallant a pararem de proibir a entrada de ajuda humanitária na Faixa de Gaza”.
E para exortar os países a romperem relações com Israel e tomarem providências concretas para interromper o genocídio. E para dizer que, após o conserto do Conscience, a Flotilha da Liberdade irá retomar a viagem, apesar dos riscos.
Ninguém morreu por causa do ataque da última sexta ao Conscience, tirando, quem sabe, algumas das 3.500 crianças menores de cinco anos que na última sexta estavam na iminência da morte por inanição na Faixa de Gaza e algumas das outras 290 mil crianças de Gaza que na sexta estavam à beira da morte por fome, por causa dos dois meses de bloqueio do sionismo.
Sobre o ataque de sexta à Flotilha da Liberdade, ao Conscience, o Itamaraty ainda não se pronunciou.
Oi, Hugo, há um erro de digitação aqui: "Há 15 anos, em 2020,"