Capital, Evangelho, Apocalipse
Sobre o documentário Apocalipse nos trópicos, o "bloco evangélico", a confusão na esquerda e até onde uma filha da elite econômica pode ver.
O documentário Apocalipse nos trópicos, da Petra Costa, pode ser visto com proveito por boa parte das pessoas alijadas do conhecimento acerca do fenômeno político da transformação de grande parte do espaço religioso evangélico em ativo eleitoral explícita e fortemente ligado a um projeto de poder.
Recomendado o filme - e tranquilizado o espectador de que o já muito satirizado tom excessivamente pessoal do Democracia em vertigem não se repete nem de perto - cabem algumas observações:
1- De forma geral, o filme é frágil na apresentação das explicações que promete, embora instigante em pequenas pistas que ficam pelo caminho.
2- Uma destas pistas é a parte histórica. A retomada de algumas raízes do pentecostalismo conservador, com as preciosas imagens do telepastor Billy Graham num Maracanã cheio em 1974 e menções às investidas de um verdadeiro evangelismo “anticomunista” no país e na região. É muito interessante também a associação deste movimento com a ditadura e o combate às Comunidades Eclesiais de Base e todos os movimentos inspirados pela Teologia da Libertação.
3- Fica ausente o papel do catolicismo conservador no golpismo de 64, inclusive com a icônica figura do Padre Patrick Peyton e seus rosários inspirando as Marchas da Família com Deus Pela Liberdade, grandes sustentáculos civis do despoletamento da ditadura. A política vaticana no pontificado de João Paulo II não merece mais que uns segundos, com uma boa imagem, mas sem maior articulação com o argumento central.
4- O aspecto mais forte do filme é a difusão da “teologia do domínio” - em contraste com a ultrapassada visão expressa por Lula de que tudo se reduz à “teologia da prosperidade”. O filme detecta o evidente para muitos mas ainda não para uma parte da esquerda e do liberalismo que tergiversa em “complexificações” irrealistas: há um grande movimento de discurso religioso que tem um projeto de poder. Este movimento é uma renovação do “anticomunismo” do passado e articula um discurso que não é uma mera enganação tola, mas um amálgama eficiente de leitura bíblica, preconceitos arraigados, aparelhos e cultura de formas de solidariedade e manipulação virtual.
Muitas perguntas, entretanto, ficam carentes de pistas para a resposta:
5- Qual a relação entre o “regime redemocratizado” e a ascensão deste movimento? A única versão que se ouve é a dos próprios pastores segundo a qual há apenas 15 anos “se interessam” por política o que, evidentemente, não é verdade, embora possa ter havido saltos de qualidade desde então. Mas e as concessões das telecomunicações - rádios e TVs - desde o governo Sarney? As articulações no auge do neoliberalismo cru dos anos 90 aí sim com a teologia da prosperidade caindo como a luva perfeita nas mãos dos fortes? E, perdoem falar de assuntos tabu, mas e os governos do PT? Não apenas as cessões a chantagens, mas as alianças ativas nos anos 2000 e mais ou menos escabrosas já nos anos 2010. (Alguém elegeu um Crivella senador e não fui eu e isso não é “tático” nem é um errinho). Não dá para resumir a relação PT - evangelismo político a apoios e compromissos pontuais.
6- O que explica a centralidade neste movimento de um pastor que autodeclaradamente não tem mais que 100 mil seguidores? Qual a articulação que existe que torna a multiplicidade de denominações e estruturas, incluindo ruidosas disputas, um bloco tão coeso em torno dos mesmos candidatos e líderes? Como funciona “o partido” no sentido gramsciano? E qual o programa real deste “partido”? Porque não é “liberdade de expressão”, “democracia”, ser contra o aborto e contra os direitos de minorias sexuais como aparece no filme. É importante que este diga que eles querem o poder, mas é importante também que se tente entender “para quê”. Qual é a relação, por exemplo, deste bloco político com o projeto neoliberal e as elites econômicas? Cada vez mais ricos se convertem e a “prosperidade” teologizada é sim um componente fundamental, ainda que não explique a forma política final sozinha, da totalidade do sentido do bloco.
7- O filme termina com algumas fragilidades. A primeira é a provocação - que até teria um potencial para outras explorações ensaísticas - sobre o comportamento do movimento e suas relações com a leitura do Apocalipse, que acaba por suplantar a tese informação central sobre “o domínio”. Fica insinuado o bloco como uma certa forma de irracionalismo, de vontade de destruição (e, portanto, desarticulado de um projeto de capitalismo mais hierarquizado e violento). Outra é a falta de investigação sobre o 8 de Janeiro e suas relações com pastores e igrejas. A justaposição fica um tanto arbitrária deixando de lado um importante potencial de alerta.
Apesar de todos estes elementos há algo fundamental que ressalta mesmo que indiretamente do filme:
Existe um projeto político, do qual o bloco “religioso” é um componente importante - com imensa influência de massas, caráter negatório da institucionalidade vigente, avesso às formas tradicionais de discurso e comunicação e racionalidade política, com um núcleo bastante amplo muito radicalizado, inserção perigosa no aparato de Estado - o policial militar dentro do ônibus ordenando que as pessoas não votassem em Lula é o emblema. E este movimento é capaz de violência, muita violência. A esquerda e os progressistas os subestimaram e continuam a subestimá-los e a não ter uma compreensão e estratégia de enfrentamento a esta ameaça (que, creio eu, tem mais a ver com uma expressão ideológica e política do atual momento da ordem do capital do que com uma vontade de poder motivada por uma vertente teológica como parece ter acreditado a diretora).
Não estamos perdidos. Se soubermos que estamos quase.
Adorei a referência à Rosa Luxemburgo.