Com quantos corpos se faz uma matança?
Chamar a barbárie pelo seu próprio nome é fundamental para expor a realidade tal qual é e romper com as ilusões que cancelam qualquer perspectiva de futuro.
“Tem gente que acha que é possível enfrentar a bandidagem com pétalas de rosa ou jogando pó de arroz”.
Esta frase do presidente Lula jamais me saiu da cabeça. Foi dita em 2007, durante o discurso em que anunciou a verba de R$ 1,6 bilhão para a reurbanização de favelas no Rio, como parte do PAC, Programa de Aceleração do Crescimento. Foi dita dias depois que uma das ações então mais letais de repressão ao tráfico deixou 19 mortos no Complexo do Alemão.
Estávamos no ano em que a cidade sediaria os Jogos Pan-Americanos, o “ano dos três Pês, PAN, PAC e Pau”, no dizer do coronel Marcus Jardim, comandante do 16º Batalhão da PM, responsável pelo policiamento daquela região que ficou três meses sob cerco das polícias civil e militar e da Força Nacional de Segurança. Em outra ocasião, o coronel chamou de “Bopecida” a tropa de elite do Rio, aquela dos homens de preto cuja missão é entrar na favela e deixar corpos no chão. Deve ter achado muito espirituosa essa definição para os exterminadores de bandidos e talvez não tenha reparado no equívoco: pois, se inseticida elimina insetos, o Bopecida eliminaria o Bope... a imprensa popular tampouco notou, ou preferiu ignorar, porque valia mais a pena explorar a imagem engraçadinha do frasco de inseticida que não deixava nenhum marginal de pé.
Dois dias antes daquela chacina no Alemão, o governador, Sérgio Cabral Filho, havia declarado que a população — de toda a cidade, portanto também da zona sul — teria de entender “o estresse da guerra”, e que aquele momento de enfrentamento era uma opção entre “o caminho civilizatório” e “o caminho da selvageria”. Que lançasse mão da selvageria para promover civilidade, não é tão contraditório assim, tantos são os exemplos ao longo da História.
Neste momento de choque diante da maior chacina da história recente do país, faço questão de lembrar daquela frase sobre as pétalas de rosas para mostrar que essas coisas não acontecem de repente, e que o comportamento dos governantes varia conforme a conjuntura e a conveniência política: então em seu segundo mandato, Lula tinha em Cabral um aliado. Agora, o governador do Rio é, mais que um adversário, um inimigo: o bolsonarista Cláudio Castro, que, desde 2021, quando assumiu o cargo, definitivamente não vem tratando os bandidos com pétalas de rosas. Foram quatro operações sangrentas a título de combate ao tráfico nas favelas da cidade. As três primeiras produziram uma média de 25 mortos. Desta vez, na “megaoperação” dos complexos da Penha e do Alemão, não houve limite para a barbárie.
Talvez porque, como disse o pesquisador Gabriel Feltran em entrevista à Folha de S.Paulo no início da semana, a investida faça parte de um projeto totalitário de extrema-direita, que vem ganhando força desde a eleição de Bolsonaro. Não por acaso, ao comemorarem o resultado do ataque, o governador e seu secretário da Polícia Civil, Felipe Curi, tenham dito que, dos 121 mortos naquele 28 de outubro, apenas quatro eram inocentes: os quatro policiais que deram a vida em nome da sociedade. Não por acaso insistiram tanto em chamar os traficantes — e mesmo os mortos que não tinham qualquer envolvimento com o crime, mas foram tratados como tais — de “narcoterroristas”: para fortalecer o apoio ao projeto de lei do deputado Danilo Forte (União Brasil-CE), que classifica de terroristas as organizações criminosas, e para facilitar a intervenção estrangeira no país a pretexto de combate ao narcotráfico, aliás demandada explicitamente pelo senador Flávio Bolsonaro numa publicação em rede social no mês passado, na esteira dos ataques do governo norte-americano a barcos venezuelanos supostamente tripulados por traficantes.
“Basta essa classificação [de ‘narcoterroristas’] para que se amplie enormemente o contingente das pessoas expostas ao extermínio sumário, em institucionalidade que protege sua fachada democrática. Assim os ‘narcopesquisadores’, os ‘narcojornalistas’ e o ‘narcopresidente’ podem igualmente ter o mesmo destino dos ‘narcoterroristas’ mortos na favela”, disse Feltran à Folha.
Bem a propósito, Felipe Curi, numa de suas coletivas (ver o vídeo ao final deste link), disse que era preciso “desmistificar um bando de mentiras e de falsas narrativas de narcoativistas que estão querendo condenar a operação”. Não por acaso a pesquisadora Jaqueline Muniz, que no dia seguinte à chacina demonstrou por que aquela operação havia sido um desastre, passou a ser alvo de ataques, tanto nas redes sociais como em locais públicos.
Na mesma entrevista, Curi fez pouco caso dos 17 mortos, do total de 117, que, segundo informações da própria polícia, não tinham qualquer anotação criminal. “Quem estava na mata estava em confronto com a polícia”, disse o secretário. “Se eles não tivessem reagido à abordagem dos policiais, teriam sido presos em flagrante pelo porte de fuzis, granadas e artefatos explosivos, por tentativa de homicídio contra os agentes de segurança e também pelos crimes de organização criminosa e associação para o tráfico de drogas. Portanto, são narcoterroristas que saíram do anonimato”.
Não difere muito do que disse o coronel Marcus Jardim à jornalista Táia Rocha, então estudante da UFF, sobre a operação de 2007 no Alemão: “mais ou menos metade dos 19 mortos tinham passagem pela polícia”. Significava dizer, portanto, que mais ou menos metade não tinha. Diante do argumento da repórter, o coronel respondeu: “são todos marginais da lei, com o mesmo potencial. A diferença é que uns tinham passagem pela polícia, outros não”. Mais tarde, retificaria, sem apagar a contradição: “Mas a maioria no morro é gente de bem. Vamos botar aí que 99,5% do morro é gente trabalhadora que não tem nada a ver com o tráfico”.
Não só por isso vale a pena reler a reportagem, mas também para lembrar que daquela vez não foram mortas “apenas” 19 pessoas, como é a referência recorrente da imprensa: foram 19 apenas naquele dia, 27 de junho de 2007. Segundo avaliação da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ na época, teriam sido pelo menos 44 durante o período de três meses da operação.
A propósito, a reportagem não foi publicada no seu devido tempo, devido a dificuldades operacionais comuns a uma universidade pública. Mas acabou saindo em 2010, quando outra operação no Alemão anunciava a “retomada do território” e a “vitória definitiva” sobre o tráfico.
Vitória. Definitiva. Em 2010.
É exaustivo, mas indispensável, lembrar tudo isso para reiterar a necessidade de se martelar o óbvio: o caráter puramente propagandístico e mentiroso da exaltação de chacinas, a inexistência de soluções imediatas para problemas complexos e a obviedade de que ninguém nasce bandido, como tentou esclarecer a juíza Vanessa Cavalieri, da Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro, num vídeo em que mostra a urgência de investimento em educação — o que inclui o tema tabu do planejamento familiar — para que a população pobre comece a ter alguma hipótese de futuro e se afaste do que lhe aparece como única possibilidade de sobrevivência.
Saída pela educação, combinada com a repressão ao crime subordinada ao respeito aos direitos humanos, foi o que tentou Brizola há mais de quarenta anos, quando governou o Rio. Entretanto, foi permanentemente atacado pelas Organizações Globo. Tinha como candidato à sucessão de seu primeiro mandato o professor Darcy Ribeiro, idealizador dos Cieps. Foi derrotado por Moreira Franco, que prometia acabar com a violência em seis meses.
Estávamos em 1986.
Não é de hoje, nem por acaso, que a maioria da população apoia soluções radicais e sangrentas para o combate ao crime violento, por mais que isto apenas alimente a insaciável máquina da morte.
Por isso não há cálculo político que justifique uma resposta protocolar diante da monstruosidade, como se o maior massacre da história recente do país pudesse ser encarado como uma questão administrativa. Apenas uma semana depois, no dia 4 de novembro, Lula falou em “matança” e ressaltou a necessidade de investigação, quando dava entrevista a agências internacionais em Belém, às vésperas da abertura da COP30, a Conferência do Clima.
Foi o que bastou para comentaristas de TV se alarmarem. Um deles argumentou: “o presidente poderia ter tido mais cuidado, poderia ter falado: vamos investigar se foi mesmo uma matança”.
Será que 117 mortos, entre criminosos e inocentes, contra quatro policiais entre os cerca de 2.500 que participaram da operação, configuram uma matança? Será que cabeças cortadas, braços decepados, tiros na nuca ou corpos esfaqueados configuram situações de confronto, atos de legítima defesa e resposta à injusta agressão? Será que o placar de 4 x 117 significa alguma coisa?
É preciso chamar a barbárie pelo seu devido nome. É preciso enfrentar a opinião pública – e as estruturas que a fabricam – para que se possa expor a realidade tal qual é e romper com as ilusões que cancelam qualquer perspectiva de futuro.





