'Comparado com os vândalos de hoje, o Átila não passa de um doce bárbaro'
Sobre um remendo que Sérgio de Magalhães Jaguaribe, o Jaguar, fez num postulado atribuído a François-Marie Arouet, o Voltaire.
Em novembro de 1970, Jaguar pegou uma cópia de Independência ou morte, o quadrão de Pedro Américo, e tascou um balão de fala em Pedro I com a frase “Eu quero mocotó!!”, refrão da música de Jorge Ben que sacudiu naquele ano o V Festival Internacional da Canção Popular na performance escrachada de Erlon Chaves e sua Banda Veneno.
Em março de 1971, poucos meses depois de o Pasquim publicar aquela “brincadeira que fizemos com a pintura famosa (e medíocre) de Pedro Américo sobre o grito da independência” — o que rendeu a 11 membros da “patota” dois meses no xadrez da ditadura — o “Pasca” publicou uma entrevista com o próprio diretor do jornal na época, Millôr Fernandes.
“Vocês só vieram me entrevistar por absoluta falta de assunto, por incapacidade do jornal de arranjar algum outro entrevistado”, Millôr foi logo dizendo, antes de enfileirar provocações sobre a música (“atividade inferior”), sobre os festivais de música (“aparecem de quatro a cinco mil candidatos. Qualquer analfabeto é capaz de compor uma música”) e sobre a música popular brasileira (“compositor popular devia, muito bem pago, ganhar salário mínimo”).
No que Sérgio de Magalhães Jaguaribe, o Jaguar, retrucou nestes termos, tascando um remendo num balão de fala, num postulado atribuído — erroneamente — a François-Marie Arouet, o Voltaire:
“Eu não concordo com uma só palavra do que você diz, NEM defenderei até a morte o direito de você dizer isso”.
Tudo bem que eram ali o Jaguar e o Millôr sendo Millôr e Jaguar — em, digamos, “absoluta falta de assunto”. Mas que falta faz hoje quem diga o mesmo, a sério, na cara de Greenwalds, Pinheiros da Fonseca e outros publicistas ricos em fibras, feixe, fascio, posto que sem glúten, lactose, gordura trans; destes que diante dos discursos de ódio, diante de neonazis tuiteiros, enchem a boca para papagaiar, para acanalhar até, a máxima que Evelyn Beatrice Hall pôs na boca de Voltaire: “discordo do que você diz, mas defenderei até a morte seu direito de dizê-lo”.
Sérgio Jaguaribe morreu neste domingo, 24, e é claro que fará falta. Jaguar morreu horas depois de Juca Kfouri responder como respondeu à dúvida do Cândido de Voltaire, ou melhor, da Folha de S.Paulo, sobre se “a Folha acerta ao dar voz ao bolsonarismo”:
“Trata-se de defender a soberania e a democracia sem concessões e outroladismo para quem solapa a democracia.”
Jaguar teria dito a mesma coisa à cândida Folha, mas com outras palavras, reeditando as palavras que usou anos atrás, com um copo na mão, na reedição do seu primeiro livro — Átila, você é bárbaro:
“Comparado com os vândalos de hoje, o Átila não passa de um doce bárbaro.”
Comovente texto -- mas apenas para aqueles que conheceram Jaguar e O Pasquim e que, por isto, conseguirão entender saporra toda e sentir uma saudade verdadeira desse grande mestre do cartum, do humor, da carioquice e da política brasileira.
Vai, Jaguar, e pede a sua gelada onde quer que você chegue!
Bem lembrado. Todo o texto.