Contra a marcha derradeira dos passeadores de cães
O general Braga Netto não planejou matar ninguém para dar golpe de Estado. Não senhora, não senhor. Apenas levou o cachorro para passear.
Em março de 2021, o então assessor especial da presidência da República Filipe Martins deixou-se filmar pela TV Senado fazendo um conhecido gesto supremacista branco: Martins uniu o polegar com o indicador e esticou os outros três dedos da mão direita, formando as letras “W” e “P”, de White Power (Poder Branco).
O caso teve ampla repercussão na mídia brasileira. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, determinou que fosse aberta investigação. Em maio daquele ano, Filipe Martins foi indiciado pela Polícia Legislativa por crime de racismo. A bola passou então para o Ministério Público e, logo depois, em junho, o MP apresentou denúncia contra Martins à Justiça Federal de Brasília.
“Não é verossímil nem casual que tantos símbolos ligados a grupos extremistas tenham sido empregados de forma ingênua pelo denunciado, ao longo de vários meses em que ocupa posição de poder na estrutura da administração pública federal, nem que sua associação a grupos e ideias extremistas tenha sido coincidência em tantas ocasiões”, afirmaram os procuradores da República.
Ainda em junho de 2021, a denúncia do MP foi aceita pelo juiz federal Marcus Vinicius Reis Bastos, da 12ª Vara Federal de Brasília, e Filipe Martins virou réu. Porém, três meses depois, em outubro, o mesmo juiz absolveu o réu sumariamente, “tendo em vista que o fato narrado, evidentemente, não constitui crime”.
Prevalecia assim o que Martins dizia em sua defesa: ele não tinha feito gesto racista coisa nenhuma; tinha apenas ajeitado a lapela do paletó.
O MP recorreu da decisão e antes tarde do que nunca, mais de dois anos depois - mais de dois anos depois, repetindo -, em novembro do ano passado, o TRF1 derrubou a decisão do juiz Marcus Vinicius Reis Bastos e determinou a retomada normal do curso do processo na primeira instância.
Prestes a fazer quatro anos da manifestação supremacista de Filipe Martins dentro do Senado da República, a ação penal segue em aberto na 12ª Vara Federal de Brasília, agora aos cuidados do juiz David Wilson de Abreu Pardo. A ação está conclusa para julgamento do Dr. Pardo há quase dois meses, desde o dia 30 de setembro. Com tantas delongas, daqui a pouco os supremacistas voltam ao poder e dão um jeito de enterrar o processo de uma vez por todas.
Nesta quinta-feira, 21, Filipe Martins foi indiciado de novo pela polícia, desta vez pela Polícia Federal e por abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
Martins foi indiciado junto com outras 36 pessoas, inclusive Bolsonaro, mas na companhia de só um dos comandantes de Força que em novembro de 2022 injetaram combustível nos acampamentos golpistas na frente dos quarteis justamente quando os acampamentos começavam a arrefecer; que jogaram gasolina no golpismo, conscientemente, deliberadamente, ao assinarem e divulgarem uma nota conjunta das Forças Armadas em apoio aos acampados que pediam “intervenção militar” contra o resultado eleitoral.
Mas não apenas isso: naquela nota, os então comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica ameaçaram com o “cumprimento das nobres missões de Soldados Brasileiros” quem tentasse mandar os acampados para casa.
É como disse Mauro Cid em mensagem a um dos signatários da nota “Às Instituições e ao Povo Brasileiro” - o então comandante do Exército, general Freire Gomes -, horas após a divulgação da nota: a mensagem dos chefes militares tinha deixado os “organizadores” do golpe “se sentindo seguros” para “canalizar todos os movimentos previstos” para a Praça dos Três Poderes.
Também só consta entre os 37 indiciados apenas um único general - Estevam Theóphilo - entre os 16 que eram membros do Alto Comando do Exército quando, ciente de conspiração em curso para golpe de Estado, o ACE andou “dividido” sobre apoiar o golpe ou lavar as mãos para ver que bicho dava, enquanto lá fora corria solta a operação “Punhal Verde e Amarelo”, para matar o presidente eleito, seu vice e o presidente da Justiça Eleitoral.
Não apareceu entre os indiciados sequer o membro do Alto Comando que atravessou blindados na avenida do Exército, na noite do 8/1, para impedir que um pelotão policial prendesse os golpistas que tinham acabado de refluir para o aconchego do Setor Militar Urbano. A cena, não custa lembrar, teve direito a canhões apontados para um comboio de viaturas liderado pelo interventor federal Ricardo Capelli.
Mas está lá, entre os indiciados, digamos que representando os ausentes, toda uma hoste de grão-milicos golpistas: Almir Garnier, Theóphilo, Augusto Heleno, Paulo Sergio Nogueira, Walter Souza Braga Netto.
Agora, a bola está com o MP, com a PGR, e o Brasil fica esperando Gonet, que está há tempos esperando não se sabe o quê, sentado em cima de outros dois indiciamentos contra Bolsonaro - joias e cartões de vacinação. Nesta quinta, a imprensa brasileira deu conta de que “Gonet não gosta de ser pressionado”, que “Gonet tem o tempo dele”, que “Gonet não vai apresentar denúncia da noite para o dia”.
Também nesta quinta, Braga Netto fez chegar à coluna de Lauro Jardim, no jornal O Globo, aquilo que o general “diz a aliados” em sua defesa, especificamente sobre a informação de que aconteceu na sua casa a urdidura do triplo assassinato de Lula, Geraldo Alckmin e Alexandre de Moraes:
“O general tinha o hábito de descer com o cachorro de duas a três vezes ao dia, nos arredores do prédio, onde costumava se encontrar com colegas de farda”.
Enquanto um apenas ajeitou a lapela do paletó, o outro não planejou matar ninguém no âmbito de conspiração para golpe de Estado. Não senhora, não senhor. Apenas levou o cachorro para dar uma voltinha.
Se a coragem for pouca, se a delonga for muita, os passeadores de cães acabam apertando outra vez o botão do elevador. Acabam descendo de novo, para um giro final nos arredores do prédio.