Duas xícaras de wishful thinking e um tablete e meio de sebastianismo
Tem coisas que só um projeto claro de sociedade pode fazer por você, para todas as outras existe a força dos cristais.

Em 2022, o estado do Pará foi o maior “case de sucesso” das alianças eleitorais do PT com partidos do Centrão. A coligação “Pra seguir em frente” elegeu o governador Helder Barbalho, do MDB, no primeiro turno, com quase dois milhões de votos de dianteira sobre o bolsonarista Zequinha Marinho, do PL. Na disputa pela vaga única de senador, o petista Beto Faro venceu o bolsonarista Mario Couto com 300 mil votos de vantagem. Nas urnas paraenses, Lula amassou Bolsonaro por quase 10 pontos percentuais. Ainda que as coligações para eleições proporcionais tenham sido extintas em 2017, 14 candidatos a deputado federal de partidos da coligação “Pra seguir em frente” conseguiram se eleger — nada menos que 82% das 17 vagas do Pará na Câmara.
Mas uma hora chega a “hora da broca”, que é como os paraenses falam quando estão com muita, muita fome.
Na última quarta-feira, 25, dos 14 deputados do Pará eleitos em 2022 por partidos da coligação “Pra seguir em frente”, 11 votaram para derrubar os decretos do IOF, marco da decisão do Centrão de inviabilizar o ano e meio que resta do governo do presidente Lula. Foram oito do MDB de Helder Barbalho, dois do PSD e um do União Brasil votando “sim, às favas com os escrúpulos”, junto com os três deputados paraenses do PL, um deles, aliás, sobrinho de Jarbas Passarinho. Entre todos os deputados federais do Pará, tirando os dois petistas do “case de sucesso”, só Elcione Barbalho, mãe do governador, não aderiu à sacanagem.
É em momentos como esse que as trombetas anunciam: “o povo não sabe votar!”; “o povo não sabe escolher seus candidatos!” — mesmo quando não há muito o que escolher.
Na contramão do Pará, o Mato Grosso foi o maior “case de fracasso” das alianças do PT com o Centrão nas eleições de 2022. Na urdidura da coligação “Para cuidar das pessoas” — federação PT/PV/PCdoB, PP, PSD e Solidariedade — Lula apoiaria na disputa pelo Senado o deputado Neri Geller, latifundiário do PP de Arthur Lira, expoente da bancada ruralista, primo do velho “rei da soja” Blairo Maggi, citado em investigações contra a invasão de terras públicas e fraude na regularização de terras destinadas à reforma agrária. É o mesmo Lula que posta no Twitter: “não adianta votar em presidente progressista e em deputado conservador”; “não queira melhorar suas condições de trabalho se você vota no seu patrão”; “não vote em latifundiário se quiser fazer reforma agrária”; “não coloque uma raposa no galinheiro ou vão comer suas galinhas”.
Bom, lá pelas tantas, o TSE cassou o mandato do Geller que não é o Uri e o tornou inelegível por captação ilícita de recursos nas eleições de 2018. O bolsonarista Wellington Fagundes, do PL, foi eleito senador com 65% dos votos. Único candidato do campo progressista ao Senado, José Roberto, do Psol, ficou em último lugar. A candidata da coligação “Para cuidar das pessoas” ao governo do estado, Marcia Pinheiro, do PV, sequer chegou à marca dos 300 mil votos. No Mato Grosso, Bolsonaro teve quase o dobro dos votos de Lula.
Uó.
Nenhum candidato a deputado federal dos partidos da coligação “Para cuidar das pessoas” conseguiu se eleger. Os partidos que conseguiram eleger deputados pelo Mato Grosso em 2022, que foram o PL, MDB e União Brasil, lançaram nove candidatos cada um. O PT lançou apenas quatro. O PV, três. O PCdoB, nenhum. A federação PT/PV/PCdoB não elegeu nenhum deputado federal pelo Mato Grosso ainda que a petista Rosa Neide tenha feito mais de 124 mil votos e nenhum outro candidato tenha feito mais de 100 mil. Como pode? Rosa Neide não foi eleita porque a federação PT/PV/PCdoB, com míseros sete candidatos disputando 2,5 milhões de corações mato-grossenses, sequer atingiu o quociente eleitoral.
A exemplo da bancada paraense na Câmara, sem contar mamãe Barbalho e os dois deputados do PT, todos os deputados federais mato-grossenses — agora todos mesmo — votaram na última quarta por flechar a jugular do governo Lula III, e eles não são os únicos “cases” entre as bancadas estaduais. Alagoas, Amazonas, Ceará, DF, Espírito Santo, Piauí: tirando um petista aqui, outro ali, nenhum deputado desses estados disse “não” à zaragata — ou seria Aragarças? — de Hugo Motta e Davi Alcolumbre.
Não se trata apenas de inimigos ocupando cargos no governo, mas também de como são feitas as salsichas, ou melhor, as bancadas: 41 dos 79 deputados não-petistas eleitos em estados onde o PT se aliou a seus partidos votaram para derrubar os decretos do IOF. Somando mais 17 deputados que se ausentaram da votação, o número chega a 58. Não é nada, não é nada, é mais de 10% da Câmara. Entre os tímidos, entre os que se esconderam na votação do IOF, estão, por exemplo, todos os seis deputados baianos do PSD, partido que integrou a coligação “Pela Bahia, pelo Brasil”, pela qual Jerônimo Rodrigues sucedeu Rui Costa no estranho, muito estranho governo petista na “terra da alegria”.
A grande maioria desses 41 deputados é de partidos do Centrão, mas nove votos para fazer os decretos de Lula em picadinhos vieram da bancada de 15 deputados do PSB, entre eles os votos “sim” de quatro dos cinco deputados do partido eleitos à sombra da coligação “Frente Popular de Pernambuco”, que reuniu do PT ao PP, do MDB ao PDT, do PSB ao Republicanos, no estado natal de Lula, para tentar, sem sucesso, eleger o peessebista Danilo Cabral para o Palácio do Campo das Princesas. Menos mal que, em Pernambuco, a petista Teresa Leitão tenha dado uma bela surra no bolsonarista Gilson “Passaporte Para Mauro Cid” Machado na eleição para o Senado.
Tirando os 17 deputados do PCdoB e do Psol, partidos que votaram 100% “não” à derrubada dos decretos do IOF, ficam apenas quatro votos “não” entre os 79 deputados eleitos em 2022 em 15 diferentes estados brasileiros por partidos que foram às urnas nestes estados de mãos dadas com o PT. Façamos as menções honrosas: nossa já conhecida mamãe Barbalho (MDB-PA), Lídice da Mata (PSB-BA), Pedro Campos (PSB-PE) e Bandeira de Mello (PSB-RJ).
Na última quinta-feira, 26, em artigo intitulado “Estamos no buraco”, o cientista político Luis Felipe Miguel tocou num ponto não muito lembrado dessa nossa fossa:
Lula e o PT sempre atuaram partindo da premissa de que a presidência era tudo o que importava. A política brasileira era como o quadribol, o jogo dos livros de Harry Potter, em que as equipes podem fazer pontos à vontade, mas ganha quem captura o pomo de ouro.
Câmara, Senado, governos estaduais, nada disso tinha peso diante da presidência. Por isso, os petistas se coligavam com qualquer partido, dando votos para ampliar suas bancadas, e cediam governos para os Sérgios Cabrais da vida, desde que garantissem a eleição do presidente.
Isto mudou, está claro que mudou, não é de hoje — vem do segundo mandato de Dilma, aprofundou-se com Bolsonaro. Mas Lula e o PT continuam desnorteados.
Discutir isso — o quanto isso foi inevitável? O quanto foi por demais? Foi chamada, a tática, para justificar o abandono concreto dos princípios? Quando exatamente, por que exatamente isso deixou de funcionar? Por que se age, ainda, como se funcionasse, como quem acredita na força dos cristais? —, discutir tudo isso, dizíamos, não pode ficar para amanhã porque hoje o fascismo está na cola. Justamente por isso, é para ontem: tem coisas que só um projeto claro de sociedade pode fazer por você, para todas as outras existem Helder e mamãe Barbalho, Neri e Uri Geller, as colheres retorcidas da realpolitik.
É para ontem, mas é um perigo: discutir rumos, cobrar um rumo diferente — ou algum rumo —, costuma ser percebido como declaração de guerra por quem acredita que traçar caminhos é encargo de um homem só, talvez dois. Aos outros homens e mulheres caberia nada mais que confiar e acatar e agradecer pelas glórias passadas. E sorrir, claro, sorrir, e fingir que não viu a vaca passando ali atrás, no passo das vacas, a caminho do brejo. São companheiros de esquerda, de quem se espera realismo crítico e pensamento dialético, em vez da receita do buraco: duas xícaras de wishful thinking e um tablete e meio de sebastianismo.
São companheiros de esquerda, mas Carl Sagan — que saudade! — diria que às vezes parecem mais os que fazem meditação transcendental e leem as folhas de chá, as cartas do tarô, os pauzinhos do I Ching.
Neste sábado, 28, a imprensa brasileira informa que “Lula vai para o embate com o Congresso”. Pronto. Finalmente, movem-se os astros.