É guerra sim!
Uma guerra política pelo próximo ano e pela fascistização da vida para muito além.
1- Nesta terça-feira, 28, o Rio amanheceu, mais uma vez, sob a égide de “operações de segurança” que pontuam a vida da cidade há décadas e que ganharam forma especialmente cruel no governo de Claudio Castro do PL de Bolsonaro. As notícias ainda são confusas, mas já é possível dizer que trata-se de um dos maiores morticínios e uma das maiores perturbações ao direito de viver na cidade. Dezenas de mortos, milhões de diretamente afetados e amedrontados.
2- O repúdio à violência, ao conjunto de violações de direitos, à ineficácia e o apoio aos movimentos de resistência contra a violência do Estado são princípios inegociáveis sem os quais nem teríamos força moral para seguir fazendo a discussão. A recuperação das bibliotecas (ou terabytes) de acúmulos teóricos é uma tarefa permanente para a abordagem qualificada dos fatos. Mas precisamos também situá-los no imediato da política de médio alcance.
3- Lula recuperou probabilidade de reeleição, enquanto o bolsonarismo e a extrema direita perderam em perspectiva de retorno ao poder. Nada está ganho e nada é certo mas, no momento, a retórica das classes dominantes arrefeceu um pouco em sua sanha de domínio absoluto e de derrotar o presidente, embora a vigília “fiscal” seja sempre panóptica e voraz. Em meio a eventos de prestígio internacional que reforçam este cenário, no entanto, houve um deslize verbal do presidente exatamente sobre o tema “dos traficantes”.
4- Há décadas a questão da “segurança” é o sujeito na sombra da disputa política, econômica e de classes no Brasil e em outros países, especialmente latinoamericanos As aspas explicam-se: não se trata de segurança, mas do que as classes dominantes chamam disso. À dificuldade de formulação discursiva e política por parte da esquerda, somou-se a maior facilidade algorítmica da direita em espalhar suas versões e o aproveitamento para fazer deste o espantalho ideal encobridor do que não pode – esperemos que nunca possa - mostrar explicitamente: seu racismo, classismo, “fobia” de pobres e favelados. A “guerra” pela segurança pública não existe, é uma “guerra” aos pobres (quase todos pretos e favelados). O tráfico de drogas seu pretexto internacionalmente forjado.
5- Alguns movimentos populares resistiram e resistem a essa lógica - movimentos de mães, de moradores, de direitos humanos - de forma heroica e importantíssima, conseguindo um espaço na pauta pública e até chegando a erigir figuras públicas e expressões político-parlamentares. Este foi e é um dos movimentos mais dolorosos e fundamentalmente humanos que já fizemos e fazemos: a recusa da política da morte contra os de baixo, a recusa da descartabilidade da vida. No entanto, a opinião pública eleitoral não foi ganha por nós. Na encruzilhada entre preconceitos ancestrais, saídas aparentemente fáceis, ódios insuflados, desinformação e ausência de políticas boas a direita vence no terreno da segurança e, pior, aproveita a pista livre para avançar seus projetos hierarquizantes em outras áreas, para precarizar vidas e naturalizar a barbárie de que depois se alimenta.
6- Como o próprio já disse, do alto de seu cinismo vil e escarnecedor, as “operações” fatais aumentaram a popularidade do governador até aqui. Ao comandar a atual, move peças do tabuleiro em favor de si próprio e da extrema direita em várias frentes:
- recoloca no centro da política a “segurança pública” e sua necroabordagem, pressionando o governo federal e a esquerda de discurso ainda sem força e dando concretude e visibilidade à política da extrema direita (a solidariedade que recebe de outros governadores é sintomática);
- ocupa ou recupera algum espaço para si próprio frente às crescentes notícias de possível coalizão entre seu PL e Paes à qual não precisa se opor necessariamente, mas na qual precisa se afirmar;
- pressiona o STF e o judiciário de forma geral e suas medidas de contenção do uso da força por parte dos estados em geral e do estado do Rio em particular (a ADPF das favelas, acusada pelo governador);
- visa fortemente uma determinada facção (até então muito apontada como decadente e agora escolhida como uma força nacionalmente ameaçadora), abrindo possíveis caminhos para outras de fora ou nem tão de fora do próprio estado;
- insere-se no cenário internacional em que Trump comprime militarmente a América Latina apontando-a como verdadeira “região traficante”, legitimando a ele e a seus tresloucados apoiadores, como o senador que até em bombardeio ao Rio falara. O uso dos termos terrorista de narcoterrorista parecem forçar uma internacionalização (ou americanização) do cenário e foram antecedidos por entrega de relatório ao próprio consulado estadunidense.
Sem uma resposta suficientemente forte dos canais da mídia tradicional (que raramente o fazem e já tem dado maus sinais), dos movimentos sociais (que poucas vezes tiveram expressão de massa neste tema) e do pensamento crítico e nas redes (que em geral são restritos) o governador sanguinolento sairá ganhando politicamente e, com ele, a extrema direita no estado do Rio e no Brasil com um Paes ainda mais apaixonado por seu entorno e suas práticas.
Depois da condenação de Bolsonaro e da suspensão do confronto com Trump, o morticínio do Rio dá para a direita extremada no Brasil um novo caminho de afirmação. E ele é de classe, tem projeto econômico e de futuro e articulado internacionalmente e com facções armadas.
7- O campo da democratização não se pode dar por vencido neste terreno. Qualquer ideia que mais ou menos flerte com a tentação de tratar esse tipo de operação como problema de “outros”, de “criminosos” ou de grupos muito específicos dentre os mais empobrecidos é um desvio que não se sustenta nem teoricamente, quanto mais moral e eticamente. As “operações” e suas mortes são um instrumento estrutural de disciplinamento das classes subalternizadas. A cada “um” que morre ou é baleado são centenas ou milhares informados de que a obediência e a submissão são as únicas escolhas. O recado do estado não é “não vá para a vida do crime”. Se fosse as atividades criminosas estariam muito enfraquecidas. O estado quer que alguns de seus subalternizados sigam o caminho do que ele próprio escolhe chamar crime. O recado é “não exija nada”, “você é descartável” (embora milhões de trabalhadores não o sejam obviamente), “cale-se, não denuncie, não reivindique, conforme-se a uma existência sem muita existência”. Todo o oposto do que a juventude favelada, trabalhadora e periférica tem exibido como disposição crescente nas últimas décadas de visibilidade acrescida.
8- A massa de trabalhadores, por sua vez, quer circular com sensação de segurança, não quer perder seus aparelhos celulares que contem boa parte de suas vidas e de seus vencimentos. O governo federal propôs medidas e a “PEC da Segurança”, mas é tudo tardio e tímido diante de um fato visível: a extrema direita tem conseguido fazer nesta área na América Latina o que faz nos países centrais por via da xenofobia, qual seja, estabelecer um inimigo forte a ser eliminado, “o bandido” e permitindo-se assim atacar todas as minorias, que são maiorias sociais, que nele podem ser encarnados com o máximo de violência direta e simbólica. Com frequência pesquisas colocam “a segurança” como preocupação central dos brasileiros especialmente em grandes centros urbanos. O campo da democracia precisa sair das cordas neste terreno sob pena de não apenas de perder eleições, como de perder a discussão sobre a relação entre força, armas, vida e morte dos corpos mais frágeis que são os destas maiorias.
9- Castro não é incompetente. É um necrogovernador. Derrotar a necrogovernança no Rio deve ser prioridade total, já que é, em sua essência, a realização do pior do bolsonarismo, com ou sem a família. Precisamos apresentar uma alternativa que nos diga apostantes na vida e no futuro. Certamente a recusa desta força sombria que aí está não é substituí-la por uma política idêntica vestindo chapéu de malandro. Vamos sim para o jogo, mas para outro. Senão, não teríamos valido até aqui de nada.
Elídio A. B. Marques é professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ.




A segurança (sem aspas) é uma preocupação legítima e qualquer debate saudável deveria partir do pressuposto de que todos querem a sua resolução.
Todavia, me parece muito claro que o necrogovernador (e a extrema-direita que aprova suas ações) não apenas não quer a resolução, como também anseiam pela manutenção do problema. A “segurança” (com aspas) rende muito poder e dividendos políticos que eles não teriam se o problema fosse realmente solucionado (com educação, oportunidades e presença do estado nas comunidades periféricas).
Em resumo, matam um monte de pobre, o problema continua e eles podem bradar que a solução é matar mais pobre. Por mais que todos os mortos fossem “bandidos”, o Rio de Janeiro estava mais seguro hoje? Ninguém sabe responder, porque não era essa a pergunta.