'É preciso enxergar longe para proteger uma vista'
Universidades públicas paulistas submetem-se à orientação da Capes de acelerar formação de doutores e ampliar “parcerias” com empresas.
“É preciso enxergar longe para proteger uma vista”, escreveu o professor Teixeira Coelho a propósito de uma recorrente polêmica sobre o vão livre do Masp. Mais do que saber o que fazer com aquele espaço, ou melhor, exatamente para saber o que fazer com aquele espaço, era preciso antes defini-lo: o que é o vão livre o Masp? “Um lugar de sonho. Um sonho da arquitetura, a afirmar que a mente é mais forte que a natureza: quatro pilares sustentam um prédio, sem mais colunas ou paredes”. Sonho, entretanto desfeito, de “uma vista desimpedida”, que alcançava as montanhas e agora está “bloqueada por um espinheiro de prédios que a vista rejeita”.
Enxergar longe significava planejar a cidade de modo que esse patrimônio cultural urbano não se perdesse. Mas se perdeu.
Teixeira Coelho, professor da USP, publicou “O sonho do vão-livre” em 2013, na Folha de S.Paulo, quando era curador do Masp.
Por que me lembrei dele agora?
Porque o mesmo jornal destaca nesta sexta-feira, 31 de janeiro, a informação de que as seis universidades públicas paulistas (USP, Unicamp, Unesp, Unifesp, UFSCar e UFABC) firmaram acordo com a Capes e a Fapesp para “acelerar a formação de doutores” e “estimular a inovação por meio de parcerias com empresas públicas e privadas”. Seria, como diz a presidente da Capes, uma ampliação da “interação universidade-empresa, que já existe no Brasil”.
Apenas os programas de pós-graduação mais bem classificados, com notas 6 e 7, podem aderir ao acordo.
O estímulo à submissão, perdão, ao diálogo com o mercado é fundamental, porque, segundo um representante da Faculdade Sebrae, “aplicar a pesquisa aos problemas reais das empresas possibilita criar soluções para toda a sociedade”.
Faz sentido: num mundo em que não há mais trabalhadores, mas “colaboradores”, empresas e “sociedade” são parceiras, caminham lado a lado para o bem comum. São, como estava na moda dizer no início do século... “empresas cidadãs”. De modo que o que é bom para a empresa é bom para a sociedade. O único reparo a fazer, nessa formulação do representante do Sebrae – além da ausência de menção à palavra “lucro” –, é a inversão dos termos da frase: pois é claro que são os problemas reais da empresa que determinarão o rumo da pesquisa. E é claro, também, que falar em “problemas reais” significa pelo menos sugerir que as pesquisas orientadas por outra perspectiva que não a aplicação imediata se dedicam a questões fortuitas, abstratas, sem importância, portanto, sem valor.
Há um quarto de século Marilena Chauí escrevia um ensaio breve mas muito esclarecedor sobre “a universidade operacional”, também publicado na Folha (em 9 de maio de 1999), que criticava a reforma universitária então em curso e apontava o pressuposto ideológico essencial que a guiava: “o mercado é portador de racionalidade sociopolítica e agente principal do bem-estar da República”. Daí que a “autonomia universitária”, pela qual tanto se zelou como resistência a pressões políticas ou interesses econômicos, passaria a ser o gerenciamento empresarial da instituição e a liberdade “para ‘captar recursos’ de outras fontes, fazendo parcerias com as empresas privadas”. Os currículos de graduação e pós seriam adaptados “às necessidades profissionais das diferentes regiões do país, isto é, às demandas das empresas locais”. Sem contar outras medidas, como a eliminação do regime único de trabalho, a redução dos concursos públicos e a “flexibilização” das relações trabalhistas, com os contratos temporários e precários.
O critério de qualidade seria “o atendimento às necessidades de modernização da economia e desenvolvimento social” e seria medido pela produtividade, que levaria em conta “quanto uma universidade produz, em quanto tempo produz e qual o custo do que produz”. Daí resultaria uma “inversão tipicamente ideológica de qualidade em quantidade”, pois não se indaga o fundamental: “o que se produz, como se produz, para que ou para quem se produz”.
A docência perderia sua marca fundamental de formação e passaria a se pautar pela transmissão rápida de conhecimentos já dados, de modo a adestrar o estudante para o mercado de trabalho, que na época ainda era estruturado de uma forma menos precária e volátil. A pesquisa se reduziria à resolução de problemas empresariais e deixaria de existir no seu sentido rigoroso e profícuo: como “a investigação de algo que nos lança na interrogação, que nos pede reflexão, crítica, enfrentamento com o instituído, descoberta, invenção e criação”, como “o trabalho do pensamento e da linguagem para pensar e dizer o que ainda não foi pensado nem dito”, como “uma visão compreensiva de totalidades e sínteses abertas que suscitam a interrogação e a busca”, como “uma ação civilizatória contra a barbárie social e política”.
(Contra a barbárie social e política: um dos objetivos desse acordo com a Capes/Fapesp é aumentar o número de inscritos em mestrados e doutorados e dar ao estudante “a segurança de que ele entrará no mercado e terá diversas oportunidades”. Justamente esse mercado que vem acelerando a destruição de empregos e profissões de maneira inédita).
Como a universidade poderia deixar de se definir como instituição social para se assumir como organização prestadora de serviços? Marilena Chauí diz que isso decorre da forma atual do capitalismo, que fragmenta todas as esferas da vida social e destrói os referenciais que antes balizavam a identidade de classe e as formas da luta de classes. “A sociedade aparece como uma rede móvel, instável, efêmera de organizações particulares definidas por estratégias particulares e programas particulares, competindo entre si”.
Um quarto de século depois, a professora retoma o tema numa entrevista ao site A Terra é Redonda, em que reafirma o conceito de universidade operacional como “a expressão mais alta do neoliberalismo” em termos universitários. Dá o exemplo da defesa de uma tese de doutorado, em 2001, na Escola Politécnica – “um dos bastiões mais altos da engenharia brasileira” –, dedicada a atender a uma necessidade das fábricas da Coca-Cola: a identificação dos trajetos mais adequados para os caminhões de distribuição do produto.
“Isso foi uma tese de doutorado”, enfatizou Chaui.
Mais grave ainda que essa degeneração do sentido da pesquisa, entretanto, é o que vem acontecendo com o Instituto de Pesquisa Tecnológica: “Fez-se uma parceira na qual, na verdade, ele foi cedido para a Google. Ele é propriedade da Google. E o que é mais deprimente é que se trata de um prédio fulgurante, um prédio histórico. Ele marca um momento da arquitetura e um momento fundacional da USP. Agora a Google colocou na frente do prédio, tudo de plástico, arvorezinhas, florzinhas, criancinhas, gatinhos, cachorrinhos, todo mundo contente, todo mundo sorridente, um mundo feliz, que é o mundo da Google, que destruiu o IPT com a privatização”.

A professora diz que, no início do ano passado, foi convidada para um congresso – ao qual “evidentemente” não compareceu – para tratar das melhores formas de relação entre a universidade e as empresas.
Em 1996, Teixeira Coelho conduziu uma pesquisa no Observatório de Políticas Culturais cujos resultados mostraram que os estudantes saíam da universidade lendo menos e com menos interesse em práticas culturais do que quando entraram. “No passado, a universidade era cultural”, disse ele na época. “Hoje, temos cada vez mais uma universidade corporativa, que vê os alunos como clientes. A universidade produz informação, o que é bom, mas também tem que fazer o aluno utilizar a informação criativamente”.
Diante dos resultados daquela pesquisa, Teixeira Coelho propôs, naquele mesmo ano, uma reformulação nos currículos mínimos de todos os cursos da USP, com a inclusão de disciplinas como filosofia, literatura, cinema e música.
A proposta foi rejeitada, sob o argumento de que representaria uma mudança muito grande, não só na universidade – com a adoção de um primeiro ano comum a todas as carreiras – mas no vestibular e nos colégios. Decidiu-se que essas disciplinas deveriam continuar como optativas.
Teixeira Coelho morreu em 2022.
Uma mudança muito grande já vinha ocorrendo, só que no sentido contrário. Agora, com essa orientação da Capes, a universidade operacional segue de vento em popa. São Paulo, com o peso que tem, promete ser o ponto de partida para uma guinada no sistema universitário federal.
Como na metáfora do vão livre do Masp, o sonho de uma universidade capaz de ampliar horizontes e enfrentar a barbárie social e política vai desmoronando. Será possível voltar a enxergar longe para recuperar essa vista?
Que texto primoroso! O neoliberalismo se espraia sem contenção ideológica. Triste, mas é um campo de luta que se abre.
Muito bom!
Essa briga vem de longe, mas agora, principalmente em São Paulo, a coisa está muito séria. Lamentável.