'E se fosse consigo? Já pensou nisso?'
A jornalista da CNN Portugal encerrou assim seu protesto contra a demolição de barracos de lata em Loures. Mas quantos se põem no lugar daquela gente?
O tratorista avança com sua máquina, em meio aos gritos dos moradores. Diante da casa que deve derrubar, desliga o motor e se recusa a cumprir a ordem. É forçado pelo oficial de justiça, que o ameaça com prisão. Ele tenta uma segunda vez, mas não consegue e cai em prantos. Chega a ser preso, mas acaba liberado diante da repercussão que sua atitude alcançou. Finalmente, a ordem de despejo é revogada.
A cena ocorreu em 2 de maio de 2003, num bairro da periferia da capital baiana sugestivamente batizado de Palestina. O nome, segundo depoimento de um líder comunitário local registrado no estudo O caminho das águas em Salvador, foi escolhido “por ser um lugar de gente pobre e trabalhadora”. Antes, era uma fazenda onde moravam pessoas vindas do Recôncavo Baiano, a maioria em barracos de madeira sem água encanada nem luz elétrica.
Saudado como herói, Amilton dos Santos, o tratorista, ganhou fama imediata, com a exposição em programas de auditório de grande audiência e muitas reportagens em jornais e TVs. Estava acostumado a derrubar barracos, mas nunca com gente dentro. “Aquilo me doeu o coração”, disse ele numa das entrevistas. “Já pensou você chegar do trabalho e não ter uma casa para colocar a cabeça no travesseiro?”
Em Loures, região metropolitana de Lisboa, quem conduzia as retroescavadeiras que desde o fim do mês passado puseram abaixo dezenas de minúsculas construções de madeira e lata no bairro do Talude Militar não teve esse problema de consciência. O processo, intensificado esta semana, foi momentaneamente suspenso pela Justiça e provocou previsíveis reações à esquerda, inclusive de membros do Partido Socialista, ao qual pertence o prefeito: em 15 de julho, deputados e ex-governantes do partido lançaram uma carta aberta intitulada “Sobre a demolição de princípios e barracas”.
O prefeito insiste em que está no caminho certo porque não pode permitir construções precárias e que demoli-las é zelar pela dignidade das pessoas. Como se preserva a dignidade de alguém subitamente jogado ao relento, ainda mais com crianças pequenas, é algo difícil de explicar. Menos ainda se explica como se descumpre flagrantemente a Lei de Bases da Habitação, que proíbe despejos administrativos sem prévia garantia de alternativa.
(A alternativa, no caso, foi a sugestão de que aquelas pessoas procurassem imóveis para alugar, tendo como garantia a oferta de pagamento da primeira mensalidade e da caução exigida. Pode parecer incrível, mas foi uma proposta a sério).
O episódio é mais uma evidência da crise habitacional em Portugal, especialmente dramática no caso de imigrantes negros e pobres, como os moradores dessa área, majoritariamente oriundos de São Tomé.
O comentário da jornalista Margarida Davim, nesta quarta-feira, 16 de junho, na CNN Portugal, começou pela irresistível ironia da proposta da prefeitura:
“A pesquisa faz-se rapidamente. No Idealista [um dos mais populares sites imobiliários] havia dois T1 para arrendar em Loures por 750 euros. Um com 30 metros quadrados, outro com 40 metros quadrados. A partir daí, o preço dispara para os 900 euros e só para nos 2.520. O salário mínimo nacional são 870 euros, mais ou menos 774 euros, depois dos descontos. Sobrariam 24 euros depois de pagar a renda do tal apartamento com um quarto”.
Isso sem contar que “o mercado discrimina trabalhadores pobres, precários e racializados”.
A jornalista apontou a desumanidade de quem “produz sem-abrigo na esperança de captar votos”, na esteira das medidas anti-imigração aprovadas naquele mesmo dia pelo governo, em acordo com o partido de extrema-direita, hoje a segunda força parlamentar no país.
“Queremos trabalhadores, mas não queremos pessoas. E é por isso que primeiro os despejamos e depois pomos os serviços sociais a tirar-lhes os filhos, castigando-os mais uma vez pela pobreza”.
Arrematou com um forte apelo emocional:
“E se fosse consigo? Já pensou nisso?”
Há mais de vinte anos, o tratorista baiano pensou e deteve a máquina que arrasaria o casebre de uma família pobre. Porque também era pobre e pôde se ver na mesma situação.
Quem, não sendo imigrante preto e pobre, consegue se colocar nesse lugar?
Vemos e vivemos situações idênticas a essas e até piores, aqui no Brasil, todos os dias. Ninguém gosta disso, exceto a polícia, muitos políticos e a classe dominante, alta e baixa burguesia, sem esquecer a cultura de extrema-direita que acaba convencendo a maioria pobre, de que preto e pobre merece morrer.
De certa forma, muitos brasileiros, principalmente mulheres e LGBTQIAP+, vivem ou viveram a expulsão de seus lares maternos. Por defenderem direitos e opiniões diferentes dos da maioria nuclear, também sofrem expulsão da vida familiar. A plataforma do povo brasileiro foi forjada na identidade norte-americana, com regras falsas e hipocrisia latente. É um povo, basicamente, preconceituoso, baseados em todas as instituições. Todas. Isso já aconteceu comigo em minha juventude. Conheço bem essa história.