E se os jornalistas começassem a reagir ao deboche?
Diante da falta de compostura, abandonar uma coletiva é uma forma de exigir o respeito e a decência que um cargo representativo impõe

No dia 24 de janeiro de 1984, ainda durante a ditadura militar, o grupo de repórteres fotográficos que cobria a presidência da República resolveu fazer um protesto silencioso. Postou-se em fila, lado a lado, na descida da rampa do Palácio do Planalto e, quando o presidente João Baptista Figueiredo passou, depôs as câmeras no chão.
Foi uma rara reação coletiva a sucessivas limitações ao exercício profissional, especialmente importante por ter ocorrido durante um período de exceção, ainda que já em fase terminal. O protesto surtiu efeito, e o gesto é até hoje lembrado – por quem tem memória – como um raro ato de coragem, que deveria inspirar outros, diante de situações inaceitáveis.
Não inspirou, como sabemos, e ao longo dessas quatro décadas as condições de trabalho se deterioraram e se alteraram radicalmente. Mas algo essencial deveria ser mantido: a necessidade de preservar a dignidade, que deveria fazer parte da conduta de toda pessoa, dentro ou fora do meio profissional, qualquer que seja. No caso de jornalistas, isso não diz respeito apenas à relação com as autoridades ou com qualquer outra fonte, mas também à forma como elas se comportam, durante, por exemplo, uma entrevista coletiva.
Não que devêssemos ter muita esperança, considerando que nenhum gesto minimamente semelhante ao desses repórteres fotográficos do tempo de Figueiredo ocorreu durante o governo Bolsonaro, cuja deliberação de confrontar, ofender e humilhar a imprensa estava nítida desde o dia da posse.
Ainda assim, qual deveria ser a atitude diante de um governador que, ao falar sobre as recentes mortes e hospitalizações decorrentes do consumo de bebida adulterada com metanol, adotasse a mesma atitude debochada de seu mentor durante a pandemia? “No dia em que começarem a falsificar Coca-Cola eu vou me preocupar”, disse Tarcísio de Freitas, sorrindo, provavelmente considerando-se muito esperto por escapar assim da responsabilidade que deveria assumir, fazendo um gracejo que de fato era um ultraje, uma forma de tripudiar das pessoas que morreram ou sofreram com a ingestão de bebida envenenada.
Nada surpreende: alguns meses atrás, Tarcísio também se esquivou de perguntas incômodas sobre a ação violenta da polícia paulista na Baixada santista, que o levou a ser denunciado à Comissão de Direitos Humanos da ONU: “o pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí”.
Na coletiva desta segunda-feira, 6 de outubro, o governador de São Paulo, em quem os donos do capital vêm preferencialmente apostando como candidato para enfrentar Lula nas próximas eleições presidenciais, optou por imitar seu mentor, que durante a pandemia debochou de quem morria asfixiado por covid, numa representação canhestra em que fingia falta de ar, e da dor de quem sofria com a perda de parentes e amigos: “não sou coveiro, tá?”.

De passagem, quis bancar o abstêmio, quem sabe como mais uma forma de aceno ao eleitorado evangélico, como se não beber álcool fosse uma virtude. (Hitler, nunca é demais lembrar, era vegetariano). “Não vou me aventurar aqui nessa área [a das bebidas destiladas], porque não é minha praia, tá certo?” Quem sabe não beba mesmo, quem sabe só tome Coca-Cola – e “da normal”, como fez questão de frisar –, e quem sabe foi por estar sob o efeito desse refrigerante que ficou tão excitado a ponto de quase destruir o martelo com o qual selava o leilão de uma obra rodoviária, na Bolsa de Valores de São Paulo, no ano passado. Ser abstêmio, entretanto, não o impede de frequentar essa “praia”, nas negociações com empresários do setor, como ironizou o jornalista Alceu Castilho em sua página no Facebook.
(Coca-Cola, como deveríamos saber, está bem longe de ser álibi. Não só por seus efeitos no organismo, mas pelo seu sentido metafórico de veneno-símbolo do imperialismo, imortalizado neste poema de Décio Pignatari, que o professor Carlos Alberto Shimote Martins destacou no Facebook, com o comentário: “O peixe morre pela boca. E quando coloca o boné do Maga na cabeça):
Diante da falta de compostura do governador na coletiva que buscava informações sobre providências em relação aos casos de envenenamento que já causaram duas mortes em São Paulo – fora as que vêm ocorrendo em outras cidades do país –, os repórteres poderiam ter tomado uma atitude equivalente ao protesto silencioso dos fotógrafos de Figueiredo, há mais de quarenta anos: levantar-se e abandonar o local.
Por que não fizeram isso? Porque temem perder seus empregos, já que as grandes empresas jornalísticas onde trabalham estão comprometidas com a candidatura do “bolsonarista moderado”? Porque nem sequer lhes passa pela cabeça um tal desafio? Porque não têm coragem?
(“O que a vida quer da gente é coragem” é só uma bela frase para ficar congelada no Grande Sertão?).
Embora avassaladora pelo mundo afora, a degradação da política não é inevitável. É possível e necessário confrontá-la. Jornalistas têm um papel fundamental nisso e deveriam ter consciência dele. Reagir – de preferência de maneira silenciosa, que no caso é a mais eficaz – a aberrações como a que acabamos de presenciar é uma forma de se dar e exigir respeito. Não é possível normalizar condutas inaceitáveis, incompatíveis com a decência elementar que um cargo representativo impõe. Enfrentar o deboche com altivez é também uma forma de dar um recado a quem elegeu essa gente, e que com ela se identifica e age da mesma maneira no cotidiano: é cobrar os princípios básicos de civilidade, sem os quais o convívio social é impossível.
Há menos de um mês, em reação a uma pesquisa que apontava o partido de extrema-direita como o preferido do eleitorado, o jornalista português Miguel Szymanski publicou um texto vigoroso em defesa da democracia, que se encaixa perfeitamente no nosso caso. Terminava assim: “não queremos um regime assente na superioridade de homens que se julgam burgueses e que não passam de burgessos [rudes, grosseiros, estúpidos]. Não os deixaremos destruir o país”.