E você? Já 'vendeu o olho' para o projeto de criptomoeda de um bilionário trumpista?
Expectativa: separar humanos de robôs de IA na internet. Realidade: um projeto de criptomoeda que visa escanear bilhões de íris humanas.
Uma mulher encara a câmera. Um homem corta com uma navalha o globo ocular de um dos olhos da mulher. A cena inicial de “Um cão andaluz”, de 1929, de Luis Buñuel, é fruto de um sonho de Buñuel e costuma encabeçar as listas das cenas mais chocantes da história do cinema.
Com trocadilho, com tudo, corta para a São Paulo de quase um século depois. Uma das cenas mais chocantes do início de 2025 no Brasil é também um pesadelo surrealista: centenas de milhares de paulistanos fazem fila para encarar uma esfera de mapeamento da íris para identificação biométrica; para “vender os olhos” a um bilionário trumpista neófito pelo equivalente a R$ 300 em criptomoedas, tudo por intermédio de uma fundação e de uma empresa de “tokens de criptoativos” registradas em paraísos fiscais.
A empresa World Assets Limited, responsável pela distribuição dos tokens Worldcoin - a criptomoeda paga a quem aceita “vender os olhos” para o projeto World ID, como muitos paulistanos - está baseada nas Ilhas Virgens Britânicas e é uma subsidiária da Fundação World, administradora do World ID. A Fundação World é uma organização “memberless”, ou seja, sem proprietários ou acionistas, dirigida por um conselho de quatro diretores, todos sem expressão pública.
Um dos membros do conselho de administração da Fundação World, por exemplo, chama-se Chris “W” Waclawek, um jovenzinho que anda todo animado porque com Donald Trump “os EUA se tornam mais favoráveis aos negócios novamente” e feliz com o perdão dado por Trump a Ross Ulbricht, maior traficante de drogas, equipamentos para hackers e passaportes roubados na internet.
Na última sexta-feira, 24, o governo do Brasil suspendeu a “venda de íris” no país para o projeto World ID. Mas é notável que meio milhão de brasileiros tenham chegado a ter os olhos mapeados, para fins de “prova segura e anônima de que você é humano”, por uma organização que tem como representante um grande fã do faraó do tráfico de passaportes roubados na internet, tudo debaixo das barbas do Autoridade Nacional de Proteção de Dados.
Mas por trás de representantes, interpostas pessoas da Fundação World, por trás do projeto World ID, afinal, está ninguém menos que Sam Altman, o bilionário fundador da OpenAI/ChatGPT.
Sem histórico de sinais públicos de simpatia pela extrema-direita, Altman, recentemente, “mudou sua perspectiva” sobre Donald Trump, passando a dizer que o governo Trump será “incrível” e que Trump irá “liderar nosso país para a era da IA”. Como? Com o projeto Stargate, de US$ 500 bilhões em investimento em infraestrutura de IA, beneficiando principalmente a OpenAI; e com a eliminação de qualquer regulamentação de IA nos EUA.
As autoridades nacionais de proteção de dados e os que fazem fila para a “vender os olhos” para o projeto World ID, no Brasil e no mundo, poderiam começar a se perguntar: por que um bilionário que adere, eufórico, a um projeto político de abolição de quaisquer regras de IA, por que o fundador da OpenAI estaria por trás de um plano de escaneamento ocular concebido “para nos salvar IA”, nos salvar da tecnologia por ele catapultada e que a ele catapultou?
Talvez seja porque o plano não tenha sido concebido de olhos postos no nobre objetivo propagandeado. A Worldcoin não é produto do World ID, não é mera recompensa, retribuição, incentivo a quem estaria apenas pondo seus olhos a serviço de um esforço global para separar humanos de robôs de IA na internet. É o contrário: o World ID é produto da Worldcoin, “um dos projetos de cripto mais ambiciosos do setor”.
Ou, naquela que parece ser a melhor definição, a do New York Times: “um projeto de criptomoeda que visa escanear bilhões de íris humanas”.
Boa sorte a quem faz fila para vincular-se de tal maneira - literalmente orgânica, com seu corpo, com seus olhos - ao projeto de criptomoedas de Sam Altman. Boa sorte a este mundo, que vai tomando rumos como este.
Aliás, esqueça “Um cão andaluz”. O scanner de íris de Sam Altman, batizado de Orb, é muito parecido com os scanners de íris do filme Minority Report, de 2002, de Steven Spielberg.
No filme, o ano é 2054. É quando um sujeito interpretado por Tom Cruise procura um açougueiro do mercado negro de transplantes para trocar seus globos oculares por outros, de outra pessoa, não sem muita dor, risco de ficar cego e pagando alguns milhares de dólares. Mas foi o jeito, com o sujeito condenado e procurado por um crime que não cometeu, com todo mundo mapeado via escaneamento de íris e com os scanners de íris espalhados por toda parte.
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