Em documentos, Grupo Enel celebra 'efeito positivo' das ondas de calor para seus lucros no Brasil
Nos seus mais recentes balanços ao mercado, Grupo Enel fala em "excelente" demanda de energia no país graças ao "efeito positivo do clima sobre o consumo”.

“Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade - escreveu Machado de Assis em “O nascimento da crônica” - É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica”.
Come Ananás se debruçou sobre os mais recentes relatórios financeiros do Grupo Enel e constatou que, enquanto os brasileiros padecem em sucessivas ondas de calor - e pagando cada vez mais caro de luz -, a Enel vem comemorando junto ao mercado “o efeito positivo do clima”; o efeito delas, as “sucessivas ondas de calor”, para sua operação no Brasil, com o aumento do consumo de quilowatts-hora nos três estados onde a companhia atua na distribuição de energia: São Paulo, Rio de Janeiro e Ceará.
Nesta segunda-feira, 17, em meio à terceira, já a terceira onda de calor de 2025 no Brasil, as capitais paulista e fluminense registraram temperaturas recordes. Na cidade do Rio, no ponto de medição de Guaratiba, na Zona Oeste, onde há uma rua Machado de Assis, o termômetro chegou a marcar 44 graus. No Ceará, um estudo recente e inédito revelou que o estado ficou 1,8 grau mais quente nos últimos 60 anos, com impactos diretos na agricultura, no abastecimento de água e na saúde humana.
Já na “cidade eterna” de Roma, precisamente no número 137 da Viale Regina Margherita, sede do Grupo Enel - e num estudo de caso do imperialismo monopolista em tempos de emergência climática -, as temperaturas positivas recordes no Brasil têm impactado, positivamente também, as remessas de lucro daqui da semicolônia lá para a matriz, contribuindo para compensar o encerramento das atividades da Enel na longínqua República da Romênia, terra de outro famoso Nosferatu.
“Nos nove primeiros meses de 2024, a eletricidade transportada na rede diminuiu devido à venda em outubro de 2023 de todos os ativos líquidos detidos pelo grupo na Romênia, o que foi apenas parcialmente compensado por um aumento na quantidade de energia transportada na Itália, Espanha e na América Latina, em particular no Brasil, após ondas de calor nos primeiros meses de 2024”, diz o relatório preliminar de 2024 da Enel, divulgado em setembro.
No relatório anterior, divulgado em agosto e relativo ao primeiro semestre de 2024, o Grupo Enel mal conteve a satisfação com as alterações climáticas quando participou o mercado sobre como “a tendência da demanda na América Latina foi no geral muito positiva, com excelente desempenho no Brasil (+9,4%) e Colômbia (+4,9%) graças ao efeito positivo do clima sobre o consumo”.

O primeiro semestre de 2024 foi o semestre mais quente já registrado na esfera da Terra. Em junho, a temperatura média global no planeta foi 1,22 grau acima da média do século XX. São Paulo teve o junho mais quente e seco em seis décadas. Na América do Sul como um todo, o calor ultrapassou em 0,51 grau o recorde anterior para o mês.
“Que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!”.
E haja quilowatts-hora.
Um caso de coliseu
Grazie all’effetto positivo del clima sui consumi, as remessas de lucro da América do Sul para Roma foram tábua de salvação para o Grupo Enel principalmente nos três primeiros meses de 2024, ante os efeitos negativos para a contabilidade romana causados pela queda da demanda de energia elétrica na Espanha e na própria Itália.
“Estes efeitos foram parcialmente compensados por um aumento nas receitas provenientes da venda de eletricidade na América Latina, principalmente na Colômbia, Peru e Brasil”, disse o Grupo Enel em seu balanço do primeiro trimestre de 2024, divulgado ao mercado em maio do ano passado.
Enquanto você passa calor recorde, passa raiva, bufando como um touro quando paga contas recordes de luz; enquanto você aguenta firme, além das sucessivas ondas de quentura, os sucessivos apagões das subsidiárias da Enel no Brasil; enquanto isso, o Grupo Enel colheu lucro líquido de 5,8 bilhões de euros, com “b”, nos nove primeiros meses de 2024 - lucro 16% maior na comparação com o mesmo período de 2023.
Vibram com “o efeito positivo do clima sobre o consumo” os grandes acionistas corporativos que controlam 58.6% da “estatal” italiana, sendo 42% deles fundos de capital dos EUA. Desses, a maior participação no Grupo Enel é do Charles Schwab Investment Management, subsidiária da Charles Schwab Corporation, que agora vai administrar um novo serviço financeiro da Trump Media pensado à feição para “patriotas americanos que querem se proteger das corporações woke”.
Nesta segunda, enquanto a gente que trabalha assava no Brasil, o Império Energético Romano negociava na London Stock Exchange dois bilhões de euros em novos títulos “vinculados à sustentabilidade”, numa encenação de alinhamento de espadas entre o capital e o clima, como se a questão entre as grandes corporações monopolistas e o combate ao aquecimento global fosse um caso de bolsas de valores, e não de coliseu: matar ou morrer.
Força, gladiador! Que calor! Que desenfreado calor em Guaratiba…
Dá raiva ilimitada quando se sabe dessas coisas. Ah! O benefício da ignorância que traz tanta felicidade….