Enfrentar em campo aberto quem combate o combate à fome
Sair outra vez do Mapa da Fome é também proceder nos esforços - de guerra - para que o Brasil não volte outra vez, pelas mãos do fascismo e do centrão, ao mais infausto dos atlas.
Espera-se que nunca mais isto seja forçoso, mas se o Partido dos Trabalhadores tirar o Brasil do Mapa da Fome mais uma vez, vai pedir música no Fantástico.
A primeira vez foi em 2014, após os governos Lula e Dilma Rousseff reduzirem a extrema pobreza no Brasil em nada menos que 75% no intervalo de uma década. A segunda foi nesta segunda-feira, 28, conforme anúncio da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/ONU).
Entre uma vez e a outra, o Brasil voltou a ter mais de 2,5% da população em risco de subnutrição, voltando assim ao Mapa da Fome. Foi no triênio 2018/2020, ou seja, foram Michel Temer e Jair Bolsonaro, centrão e militares, golpe e fake news, Moro e Dallagnol, lavajatismo e fascismo, Zé Neto e Cristiano e por aí vai.
O Brasil segue longe de ser grande coisa para quem trabalha, para os filhos de quem trabalha e para quem já trabalhou, mas aquele era o tempo da fila do osso em Fortaleza, em que a fila para um prato de almoço em um restaurante popular de Manaus formava-se às oito da manhã e, no Rio, supermercados vendiam às oito da noite restos de queijo prato cortados em formato de coração, como que zombando do famoso aforismo de Eduardo Galeano:
“O sistema, que não dá de comer, tampouco dá de amar”.
Foi quando o oligopólio da mídia corporativa que opera no Brasil publicou e transmitiu com indignação a volta do Brasil ao Mapa da Fome e afetou escândalo sempre que Bolsonaro minimizava a fome no país, como agora o führer de Tel Aviv, Netanyahu, jura que ninguém passa fome na Faixa de Gaza.
É a mesma mídia, porém, que há mais de 20 anos, nos primeiros meses do governo Lula 1, declarou guerra ao programa Fome Zero, concomitantemente ao início da guerra igualmente injusta movida por Bush 2 contra o Iraque.
Assessor especial de Comunicação da Presidência da República nos primeiros anos do primeiro governo Lula, o jornalista, escritor e professor Bernardo Kucinski municiava Lula com uma espécie de jornal particular, com textos “escritos diariamente, impressos, guardados em envelopes e entregues ao presidente na primeira hora do dia” contendo análises sobre o que davam os jornais ditos “de referência”.
Mais recentemente, as cartas de Bernardo Kucinski a Lula saíram reunidas em livro, vindo a público pela primeira vez. Logo no primeiro capítulo do livro estão as cartas sobre o Bolsa Família e o Fome Zero. Ali, Kucinski informa o presidente, por exemplo, sobre como o “potencial emancipador do Fome Zero mexe com a mídia”, que bombardeava o programa com - palavras de Kucinski - “fogo ininterrupto”.
Vale a pena revisitar uma dessas cartas em especial, uma que chegou às mãos de Lula na primeira hora do dia 7 de março de 2003, para dar a medida de até que ponto a perspectiva de verdadeiro avanço da Democracia mexe com o oligopólio da mídia; de até que ponto o oligopólio da mídia pode chegar em sua incurável alergia às classes populares, para não dizer famintas:
Matérias contra o Fome Zero continuam predominando. As últimas foram:
“Marketing do Fome Zero”, em Dinheiro deste fim de semana.
“O que há de errado no Fome Zero”, de Maria Hermínia no Estadão do domingo.
“Morrer de fome é raro no país”, na Folha da terça-feira.
Essas matérias deixaram claro outro ponto de conflito: o programa fala uma linguagem dissonante do “continuísmo”. Ao contrário do que acontece na macroeconomia, ele rechaça a ideia de "fazer mais do mesmo"; não quer ser a extensão dos projetos sociais tucanos. Isso incomoda amplas faixas da comunicação acadêmica e ONGs aninhadas em ações sociais da gestão anterior. Parte deste núcleo fornece “munição intelectual e estatística” para a artilharia pesada para colunistas, editorialistas e páginas de opinião. Há aí uma simbiose do conservadorismo com a academia.
A Folha da terça é, neste sentido, exemplar: declara ser irrelevante o combate à fome. Dá uma página de entrevista com epidemiologista gaúcho para dizer que é raro morrer-se de fome no Brasil. A linha fina da manchete desqualifica o Fome Zero ao afirmar que investimento em saúde traria mais resultados que projetos contra desnutrição. Um sofisma. O texto sugere a irrelevância do combate à fome até mesmo para reduzir a mortalidade infantil - “caso inexistisse a desnutrição, ela (a mortalidade infantil) cairia em no máximo 14,5%...”.
Afirma ainda que quase não existe desnutrição entre adultos no Brasil (ao lado, porém, retranca enviada pela correspondente do jornal no Piauí relata pesquisas que identificaram déficit proteico em Acauã e Guaribas).
Um box busca “sustentação científica” para desmerecer a prioridade social do governo Lula: a desnutrição nunca é a causa direta da morte, afirma o repórter, mas sim as infecções oportunistas que proliferam num organismo debilitado. Levado ao extremo, o mesmo raciocínio se aplica à Aids, que em geral não é a causa da morte, mas sim as infecções pulmonares que proliferam no aidético. Seria melhor investir em doenças pulmonares do que em prevenção à Aids?
O universo do Fome Zero (44 milhões de pobres) é novamente contestado. A entrevista da Folha “desmente” a existência de 44 milhões de famintos no Brasil, o que nunca foi afirmado pelo governo. O mesmo faz Maria Hermínia no Estadão. Esse contingente reflete o total de brasileiros que vive em insegurança alimentar, por conta de renda insuficiente (US$ 1,08/dia). São brasileiros que não têm acesso regular a uma alimentação equilibrada, tanto do ponto de vista da qualidade, quanto da quantidade.
O fundamento do programa “Uma política de segurança alimentar” ainda não foi incorporado ao raciocínio jornalístico, deixando espaço para as críticas de que o Fome Zero “exagera”. Ao escancarar um contingente da ordem de 50 milhões de pobres no país, sujeitos à fome crônica ou episódica (insegurança alimentar), o Fome Zero expõe o fracasso do modelo neoliberal e do seu antídoto compensatório, o Comunidade Solidária. Daí a série de artigos acadêmicos de cunho “científico” em que se procura demonstrar que o Brasil não tem uma escala de fome africana. O conceito de Segurança Alimentar - base do Fome Zero - é habilmente deslocado do debate.
“Morrer de fome é raro no país”, publicou a Folha de S.Paulo contra o Fome Zero no início do combate à fome no governo Lula 1, ainda que o próprio entrevistado tivesse elogiado o programa efusivamente. No início do desgoverno Bolsonaro, em 2019, após Bolsonaro dizer que era “uma grande mentira” haver fome no país, a Folha rebateu informando que em média 15 pessoas haviam morrido de desnutrição no Brasil em 2017 - últimos dados então disponíveis.
“A desnutrição é a expressão corporal da fome. A morte por desnutrição é um extremo, mas a gente tem estágios de desnutrição e estágios de insegurança alimentar nutricional. A gente não quer só que as pessoas não morram de fome, quer que as pessoas não vivam com fome”, disse à reportagem, na época, a professora Patrícia Jaime, da Faculdade de Saúde Pública da USP.
Tardiamente, em algum momento, o fundamento do Fome Zero - “uma política de segurança alimentar” - foi finalmente incorporado ao raciocínio jornalístico...
Sobre a suposta irrelevância do combate à fome para reduzir a mortalidade infantil, o tempo passa, o tempo voa, e em outubro de 2009 a própria Folha noticiou um estudo da ActionAid mostrando que “o programa Fome Zero, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, reduziu a desnutrição infantil em 73% e a mortalidade infantil em 45% no Brasil”.
No ano seguinte, 2010, Lula foi condecorado pela ONU com título de “Campeão Mundial na Luta Contra a Fome”. Em 2011, já ex-presidente, o agora de novo presidente do Brasil ganhou o World Food Prize, o “Nobel da Alimentação”.
A World Food Prize Foundation explicou que “Lula foi escolhido por antecipar as Metas do Milênio da Organização das Nações Unidas ao garantir que 93 por cento das crianças e 82 por cento dos adultos façam três refeições por dia”.
Quando o Brasil saiu do Mapa da Fome pela primeira vez, já se desenhava que só o enfrentamento em campo aberto com Zé Neto e Luciano, se é que você me entende, em vez do congraçamento com eles, poderia evitar uma grande marcha para trás; que só o enfretamento com quem combate o combate à fome poderia garantir que o país não retornasse ao mais infausto dos atlas.
Hoje, então, nem se fala. Nem precisa desenhar o tempo histórico, nem o que ele exige de nós, a não ser que a nossa grande tarefa nesse tempo seja pedir música no Fantástico.