Enquanto esperamos Gonet, eles esperam Trump
"O inquérito tem muitas páginas". “Gonet pretende estudar de forma detalhada o inquérito”. "Gonet quer ser excessivamente cuidadoso”...
Dias atrás, após o indiciamento de Jair Bolsonaro e outras 36 pessoas por golpe de Estado, começou a circular a informação de que o procurador-geral da República, Paulo Gonet, irá denunciar Bolsonaro e companhia ao STF só em fevereiro do ano que vem. Só no ano que vem, “que ainda por cima amanhecerá com Trump”, como ressaltou Sylvia Moretzsohn neste Come Ananás.
Na imprensa, instrui-se que o inquérito do golpe tem “muitas páginas” - são mais de 800 - e que não cabe mesmo pressa para destrinchá-las, porque é necessário punir o golpismo “de maneira serena, técnica e equilibrada”, a fim de não melindrar aqueles que um colunista do jornal O Globo chamou na semana passada de “parcela importante da cidadania” - os eleitores de Bolsonaro.
Na imprensa, informa-se que “Gonet pretende estudar de forma detalhada o inquérito da Polícia Federal”; quer ser “excessivamente cuidadoso”; não quer “um grande intervalo entre a apresentação da denúncia e o julgamento do STF, que entra em recesso em dezembro”.
Ao mesmo tempo, para efeito de comparação - ou melhor, de contraste - começou a circular nas redes sociais a recordação de um tuíte postado em dezembro de 2017 pelo sociólogo Emir Sader. No tuíte, Sader diz que “o revisor do processo do Lula leu 250 mil páginas em seis dias. Isto é: ele leu duas mil páginas por hora, sem dormir, durante seis dias”.
Pois vamos “estudar de forma detalhada”, como diria Gonet, essa história digna da famosa ironia de Woody Allen sobre um clássico de 1.500 páginas: “fiz curso de leitura dinâmica e li ‘Guerra e paz’ em 20 minutos. É sobre a Rússia”.
A história é a seguinte:
Sergio Moro condenou Lula no caso do triplex no dia 12 de julho de 2017. Apenas 42 dias depois, em 23 de agosto, o recurso começou a tramitar na segunda instância. “Apenas”, porque as apelações da Lava Jato feitas até aquele momento tinham levado, em média, 96 dias para chegar ao TRF-4. A de Lula foi a mais rápida. O lavajatismo tinha pressa.
Depois, o relator da Lava Jato no TRF-4, desembargador João Pedro Gebran Neto, levou não mais que 36 dias úteis para deixar seu voto pronto - 36 dias para analisar mais de 250 mil páginas e redigir outras 430.
Em seguida, o revisor do voto de Gebran, desembargador Leandro Paulsen, examinou o processo, as provas e as 430 páginas do colega em vertiginosos seis dias úteis. Ato contínuo, no dia 12 de dezembro, a uma semana do fim do ano judiciário de 2017, Paulsen marcou o julgamento do recurso de Lula para o dia 24 de janeiro, primeiro dia do ano judiciário de 2018.
Os processos da Lava Jato que tinham chegado ao TRF-4 até aquele momento tinham demorado, em média, 10 meses para ficarem prontos para julgamento. O processo de Lula foi para a marca do pênalti em três meses e 19 dias.
“É sobre a Rússia”.
Antes mesmo de o processo do triplex chegar à segunda instância, o presidente do TRF-4, Carlos Eduardo Thompson Flores, disse em uma entrevista ao Estadão que a sentença de Moro era para “entrar para a história”, que era “tecnicamente irrepreensível”, que Moro fez um “exame minucioso e irretocável da prova dos autos”.
Na mesma entrevista, porém, Thompson confessou: “não li a prova dos autos”.
Depois, em novembro de 2017, num evento magistocrático em Curitiba, Thompson afirmou que julgar Lula o mais rápido possível era um “interesse da nação”. Estavam lá Moro e Deltan Dallagnol. O evento era para entrega ao ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no STF, de uma comenda oferecida pela Associação Comercial do Paraná.
No dia 24 de janeiro de 2018, a 8ª Turma do TRF-4 condenou Lula em segunda instância, por três votos a zero, confirmando Moro e ainda agravando a pena. A unanimidade da decisão foi mais um fator que acelerou o processo de Lula, impedindo a defesa de impetrar embargos infringentes - instrumento para esclarecer divergência entre os desembargadores e que tem efeito suspensivo sobre o acórdão.
Restou à defesa de Lula entrar com embargos de declaração, apenas para esclarecer palavras e expressões usadas pelos desembargadores. Isso foi feito no dia 20 de fevereiro. Na época, o TRF-4 julgava esse tipo de recurso em 37 dias, em média. Menos os da Lava Jato, que eram julgados, em média, em 14 dias. Um deles chegou a ser julgado em menos de uma semana.
Os embargos de declaração de Lula foram julgados no dia 26 de março de 2018, em 34 dias, quase na média geral. Ali, naquele momento, não havia pressa no lawfare: a prisão de Lula dependia, sim, da decisão do TRF-4 sobre os embargos de declaração - fim da fase de recursos no segundo grau -, mas de qualquer maneira não aconteceria antes de 4 de abril, data marcada para o julgamento do Habeas Corpus de Lula no STF.
No dia 4 abril, sob ameaça do Exército, o STF rejeitou o Habeas Corpus, em votação apertada - seis votos a cinco. No dia seguinte, 5 de abril, o TRF-4 encaminhou ofício ao juiz titular da 13ª Vara Federal de Curitiba autorizando a execução da pena. Moro decretou a prisão de Lula no mesmo dia, menos de 20 horas após a decisão do STF.
Quando querem muito, quando interessa, quando foi para tirar Lula da eleição presidencial de 2018, as instituições brasileiras são, foram um reloginho. Um reloginho político. Foram logo resolvendo a parada, passando a régua. Caíram matando.
Senão, quando não querem tanto, “são muitas páginas”. Senão, as instituições democráticas acabam passando para “parcela importante da cidadania” a impressão escandalosa de que servem à Democracia.
É verdade que quem caiu matando lá atrás, mesmo com falta de provas, viu suas sentenças e acórdãos serem anulados, um a um, alguns anos depois. Mas só a papelada e as penas de prisão, nunca as consequências.
Lula ficou fora da eleição de 2018 e as consequências nunca poderão ser revertidas: Bolsonaro venceu a eleição; Bolsonaro ajudou o vírus a matar centenas de milhares de brasileiros na pandemia; Bolsonaro tentou dar um golpe contra Lula, quando Lula finalmente disputou a eleição e venceu para um terceiro mandato.
Agora, enquanto esperamos Gonet - mesmo com abundância de provas -, os golpistas esperam Trump. Enquanto o “excessivamente cuidadoso” é esperado em fevereiro, Trump chega antes à Casa Branca, em 20 de janeiro. Os golpistas esperam Trump, algum pedido de vistas e, quando viu, as eleições de 2026.
Se é que esperam: indiciados por golpe da Estado, mas livres - ao contrário dos buchas de canhão do 8/1 - os cabeças da conspiração golpista acabam lotando não exatamente o banco dos réus, não o Complexo Penitenciário da Papuda, mas sim a Embaixada da da Hungria.