Eremildo, o idiota, acha que o Oscar redimiu Rubens Paiva
Só se forem responsabilizados pelos seus crimes os torturadores terão sido derrotados, o que permitiria inaugurar uma nova fase na história do país.
Eremildo é um idiota.
Por idiota, empolgou-se a tal ponto com a conquista do Oscar, comemorada por multidões país afora, que chegou à seguinte conclusão: os facínoras que prenderam, torturaram e mataram Rubens Paiva foram derrotados.
Rubens Paiva, como mostra Ainda estou aqui, vencedor do prêmio de melhor filme estrangeiro, e como várias reportagens mostraram há décadas – desde a famosa investigação de Fritz Utzeri e Heraldo Dias publicada no Jornal do Brasil em outubro de 1978 –, confirmadas depois pela Comissão Nacional da Verdade, foi retirado de sua casa em 20 de janeiro de 1971 para prestar depoimento. Espancado impiedosamente, morreu no dia seguinte. Os agentes da ditadura logo plantaram versões falsas sobre o seu desaparecimento. Sua viúva, Eunice Paiva, só receberia a certidão de óbito depois de muito batalhar, em 1996, e apenas em janeiro de 2025 o documento seria retificado, atendendo a determinação do Conselho Nacional de Justiça, para definir a causa da morte: “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”.
Nesta semana, em entrevista ao Intercept Brasil, o ex-paraquedista Valdemar Martins de Oliveira, que “prestou serviços de busca, apreensão e espionagem para o Exército durante a década de 1970”, disse que o corpo de Paiva foi arremessado ao mar preso a uma roda de caminhão – algo que não havia declarado em seu depoimento à Comissão Nacional da Verdade, em 2013.
Mas, segundo Eremildo, esses assassinos até hoje impunes perderam. “Perderam para a memória de Eunice Paiva, sua viúva, para o livro escrito por seu filho Marcelo, para a arte de Walter Salles, para Fernanda Torres e a equipe do filme. Perderam para a memória dos povos, num momento em que o Brasil se uniu numa torcida semelhante à das vitórias da seleção brasileira de futebol. Podiam tudo e perderam”.
Não.
Teriam perdido – apesar de vitoriosos em suas ações – se tivessem sido julgados e condenados pelos seus crimes. Jamais foram. São 377, de acordo com o relatório final da CNV. Muitos já morreram. No caso Rubens Paiva, apenas dois ainda estão vivos. Um deles, o general José Antônio Belham, recentemente foi incomodado com o escracho promovido pelo Levante Popular da Juventude, em frente ao prédio onde mora, na zona sul do Rio de Janeiro. Mas continua tocando a vida e recebendo seus proventos, resultado de seus relevantes serviços prestados à pátria.
As tentativas de responsabilização desses criminosos esbarraram sempre na interpretação prevalecente da reciprocidade da Lei de Anistia, aprovada em 1979, ainda em plena ditadura. A desigualdade das forças em jogo praticamente impôs a conclusão de que os “crimes políticos ou conexos com estes”, ambiguamente definidos na lei, se referiam também aos torturadores, que assim estariam automaticamente livres de qualquer punição. É um equívoco elementar no direito penal, porque não há conexão entre um crime e a repressão a ele, nem a tortura poderia ser equiparada a crime político. Mas, tanto tempo depois do fim do regime militar, no julgamento da ADPF 153, proposta pelo Conselho Federal da OAB, o STF decidiu, em 2010, que aquela era uma conexão sui generis, estabelecida em consequência de um acordo entre o governo militar e a oposição.
Em dois artigos críticos a essa decisão, um deles em parceria com Ricardo Silveira Castro, José Carlos Moreira da Silva Filho argumenta que, dada a disparidade das forças em jogo, não houve, de fato, nenhum acordo real em torno da redação daquela lei, cuja aprovação, entretanto, foi importante para que os militares, ainda que não apoiassem, pelo menos não dificultassem o processo de abertura política. Mas, como apontam estudos sobre justiça de transição, a estabilidade alcançada em decorrência desse processo precisa proporcionar a responsabilização dos agentes da repressão no período de exceção, para que se possa viver num regime democrático digno desse nome.
É o que se vislumbra finalmente agora, quando o STF decidiu reabrir processos não apenas relativos a desaparecidos – caso de Rubens Paiva – mas a vítimas de tortura, o que põe em causa a reavaliação da aplicação da Lei de Anistia aos que perpetraram essa violência. Tema que sempre foi tabu, não apenas nos meios militar e jurídico, mas na imprensa, como escrevi aqui.
Não será uma discussão fácil, ainda que – ou por isso mesmo – esteja no contexto do julgamento dos acusados pela conspiração golpista de 2022, que previa o assassinato de Lula, Alckmin e do então presidente do TSE, Alexandre de Moraes, e que estimulou os protestos em frente aos quartéis e a depredação da Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023.
Sem ressaltar a relevância da abrangência dessa hipótese de reinterpretação da Lei de Anistia, reportagem da revista piauí publicada nesta semana relata que dois ministros do STF consideram problemática a rediscussão da lei em plenário, “em um ambiente já conflagrado entre o Supremo e outras instituições” – isto é, a parcela do Legislativo defensora de Bolsonaro e seus aliados: isso “poderia deixar o tribunal suscetível a mais ataques”, o que tumultuaria o julgamento da denúncia contra os golpistas. Ao mesmo tempo, a matéria informa sobre a movimentação de parentes de mortos e desaparecidos em favor da responsabilização dos autores dos crimes praticados durante a ditadura.
Tudo vai depender, como sempre, da correlação de forças. Que poderá ser favorável caso se consiga demonstrar a importância de se romper com a tradição de conciliação que, de tempos em tempos, nos faz mergulhar em longos períodos de exceção. O plano do “Punhal Verde e Amarelo” está aí para indicar que, afinal de contas, nossa última ditadura não durou os 21 anos formalmente assinalados no calendário, e não só pelos seus prolongados efeitos na vida social, econômica e política, mas porque manteve intacta a formação dos militares, que voltaram à carga assim que tiveram oportunidade.
Eremildo não ignora como votou o ex-capitão feito parlamentar no dia em que a Câmara dos Deputados aprovou o impeachment de Dilma Rousseff. Não ignora que esse parlamentar exibia na porta de seu gabinete um cartaz com a inscrição “quem procura osso é cachorro”, para debochar dos esforços da Comissão de Mortos e Desaparecidos. Não ignora as camisetas pretas com a imagem do representante máximo da tortura no Brasil – até hoje, o único oficialmente reconhecido como tal – e a frase “Ustra vive”.
Portanto, diferentemente do que diz o idiota, quem venceu até agora foram eles. Só se forem julgados e condenados terão perdido. Por isso é crucial insistir na reinterpretação da Lei de Anistia. Se, depois de mais de meio século, já não se poderá falar propriamente em justiça, a responsabilização desses facínoras terá ainda assim o significado fundamental de estabelecer um ponto de partida para uma nova fase na história do país.