'Foras da lei, já nos bastam os bandidos'
Um tijolaço no secretário de Segurança Pública que tentou liquidar a Polícia Federal e outro no governador de estado que age abertamente como chefe de grupo de extermínio.
Em meados da década de 1980, no âmbito da conhecida luta de Leonel Brizola contra o boicote e a sabotagem que ele sofria das Organizações Globo, o então governador do Rio de Janeiro começou a publicar artigos pagos na imprensa carioca — primeiro no Jornal do Brasil, depois em O Globo — para fazer circular suas ideias. Os espaços nos jornais eram pagos em parte pelo PDT, em parte por contribuições voluntárias depositadas em conta concorrente exclusiva para este fim, movimentada apenas para financiar a publicação dos “tijolaços” de Brizola.
Não existia nem Vakinha, nem Catarse, nem Pix. Também não havia redes sociais para compensar com milhões de seguidores a falta de espaço na mídia de massas. Não tinha secretário de Segurança Pública tentando liquidar a Polícia Federal. Tampouco governador de estado agindo tão abertamente como chefe de grupo de extermínio e, por isso, vale a pena relembrar o “tijolaço” de Brizola intitulado “Genocídio”, publicado durante o governo Moreira Franco no Rio e após a Anistia Internacional denunciar o extermínio de crianças no Brasil, entre elas os meninos e meninas que sumiram na chacina de Acari e nunca mais apareceram.
Mais tarde, quando saiu um outro relatório da Anistia Internacional sobre o mesmo tema, O Globo saiu-se com essa, em editorial:
“Volta a Anistia Internacional a acusar o Brasil de exterminar crianças. É mais uma das deturpações da realidade brasileira que passaram a ser manipuladas pela imprensa internacional para satisfazer a estranha obsessão de desmoralizar este país, que, como se sabe, deve muito aos banqueiros também internacionais (…) A questão está no efeito propagandístico da palavra ‘criança’. Nos EUA, não ocorre a ninguém chamar de criança um jovem entre 16 e 18 anos, até porque lá o delinquente dessa idade é penalmente responsável, ou seja, é julgado, condenado e vai para a cadeia. Isso poupa aquele país de ser considerado exterminador de crianças”.
Notável, não? Entre as vítimas da chacina de Acari, Viviane Rocha tinha 13 anos de idade; Cristiane Souza Leite e Wudson de Souza, 16; Wallace do Nascimento, Antônio Carlos da Silva, Luiz Henrique Euzébio da Silva e Edson de Souza, 17; Rosana Lima de Souza, 18.
Os “tijolaços” foram reunidos em um livro homônimo publicado em 2017 pelo Galpão de Ideias Leonel Brizola.
Com vocês, Leonel Brizola.
Genocídio
De diversas partes do mundo nos têm chegado as repercussões do relatório da Anistia Internacional sobre o assassinato de crianças no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro. Os que me acompanham devem recordar que há muito estamos alertando que a atuação dos grupos de extermínio em nosso estado constituía um escândalo de proporções internacionais. Principalmente porque, nos últimos anos, tudo vem ocorrendo dentro de um ambiente de omissões e impunidade tolerado pelos governantes. Agora está aí o fato indesmentível: nosso país submetido à humilhação de ser visto, no exterior, como cenário de um genocídio que nos iguala ao que ocorreu com o nazismo ou, mais recentemente, durante as guerras do Vietnã, do Líbano ou nos massacres de El Salvador.
É tão chocante o que vem acontecendo que diversos dirigentes de partidos da Internacional Socialista nos vêm indagando sobre quem são e o que vêm fazendo as autoridades responsáveis pela segurança pública diante desse verdadeiro massacre. A todos tenho procurado informar que esses grupos de extermínio, que proliferaram no período autoritário, ramificaram-se, corrompendo o próprio aparelho policial e contando, muitas vezes, com a complacência das autoridades governamentais.
Em meu governo, mesmo enfrentando toda sorte de obstáculos, pusemos fim à impunidade desses matadores. Centenas de inquéritos foram abertos e grande parte dos denunciados foi levada à prisão para responder por seus crimes. Com isso, conseguimos refrear e praticamente fazer cessar a ação daqueles grupos. Mal se iniciou o atual governo, recomeçaram as execuções sumárias. Logo nos primeiros dias, vivemos o episódio chocante do assassinato do jovem Marcellus Gordilho*. A situação voltou a níveis intoleráveis e culmina, agora, com o registro escandaloso feito pela Anistia Internacional, trazendo à tona números que — todos sabemos — ainda representam somente uma parcela do total. Dados levantados por entidades independentes observam que, nos últimos anos, registraram-se 1.044 assassinatos de menores na Baixada Fluminense, estimando-se que um terço deles por ação de grupos de extermínio.
Um governo coerente, no Rio de Janeiro, deve, logo ao assumir, deixar patente a sua determinação de pôr fim a essa matança. A mesma frieza e determinação que iremos empregar para combater os assaltantes, aqueles que roubam, matam e sequestram, terá de ser usada sobre os autores e responsáveis por esse genocídio. Precisamos de uma polícia eficiente, e não de uma polícia violenta. Esses grupos de assassinos só fazem gerar mais violência e criminalidade. Foras da lei, já nos bastam os bandidos. Os governos e sua força policial, para ter o respeito da população, devem ser os primeiros a zelar pelas garantias individuais e coletivas do povo a quem devem servir. É assim que iremos proceder, em nome de todos os cariocas e fluminenses.
*Em março de 1987, o estudante Marcellus Gordilho foi espancado por cinco policiais militares que o haviam prendido na Cidade de Deus.




