'Ma quale fascismo?'
Diante da proverbial dificuldade dos técnicos da seleção da CBF com o gosto popular, Ancelotti não voltará a usar um provérbio "de Julio Cesar" que lhe rendeu suspeitas de fazer eco a Mussolini.
“É oficial que a partir do dia 26 serei o treinador do Brasil”, disse nesta terça-feira, 13, em entrevista coletiva, o italiano Carlo Ancelotti, novo técnico da seleção da CBF. Foi num 26 de maio, há quase 100 anos, em 1927, que Benito Mussolini regurgitou no Parlamento Italiano um dos lemas do fascismo: “tudo no Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado”.
Mas isso é apenas uma coincidência sem importância, sem qualquer significado.
Há 10 anos, porém, saiu da boca de Carlo Ancelotti um outro famoso bordão do Duce. Em 2015, numa outra entrevista coletiva, esta dada pelo técnico após um jogo entre o Real Madrid e o Schalke-04 (frequentemente referido, aliás, como o time de Hitler), Ancelotti achou uma boa ideia recitar: “muitos inimigos, muita honra”. Diante do estupefato geral, tentou se ajeitar dizendo que sempre atribuíra a frase ao pontifex maximus Julio Cesar…
“Ma quale fascismo? Ho citato Giulio Cesare.”
O que motivou Carlo Ancelotti a dizer a frase, no entanto, não ajudou muito a explicação dada pelo treinador. Na entrevista, ele “apenas” saíra em defesa do amigo Arrigo Sacchi, o ex-técnico da Squadra Azzurra que dias antes reclamara publicamente que havia “muitos negros” nas categorias de base dos clubes italianos, sendo por isso alvo de uma saraivada de críticas.
Na época, Sacchi, em sua própria defesa, saiu-se com algo como “ma quale racismo?”, dizendo que fizera apenas “um alerta futebolístico e ético”.
Três anos depois, em 2018, o bordão “muitos inimigos, muita honra” seria tuitado por um dos líderes da extrema-direita italiana e então ministro do Interior, Matteo Salvini, bem no dia do aniversário de Julio Cesar. Mentira. Bem no dia do aniversário de Mussolini.
Em agosto de 2022, às vésperas da eleição da herdeira do fascio Giorgia Meloni para o Palácio Chigi, multidões acorreram à cidade natal de Mussolini, Predappio, na Emília-Romanha, numa peregrinação evocativa da Itália Fascista.
As lojinhas da cidade se fartaram de vender canecas com o desenho da águia imperial fascista, vinhos com o rótulo “Duce”, bustos em miniatura de Mussolini. Mas a “lembrancinha” mais vendida naquele ano na pequena Predappio, segundo a Rádio França Internacional, foi a camiseta estampada com os dizeres “muitos inimigos, muita honra”.
Como técnico do Real Madri, Carlo Ancelotti vinha defendendo enfaticamente Vinicius Junior diante dos recorrentes ataques racistas ao jogador na Espanha. Mas em 2022, quando começaram as ofensas racistas contra o jogador nos estádios espanhóis, Ancelotti parecia estar ainda no modo amigo de Arrigo Sacchi que cita “Julio César”.
“Na Espanha, não vejo essa forma de racismo”, disse Ancelotti quando questionado sobre um jornalista esportivo espanhol que exortara Vinícius Júnior a “ir fazer macaquices no sambódromo”.
Perguntado, naquela feita, se o racismo sofrido por Vinícius era discutido no vestiário do Real Madrid, o treinador disse que preferia não tratar dos problemas extracampo dos jogadores, focando apenas no futebol: “uma coisa é o racismo, outra coisa é o que acontece em campo, com as provocações”.
Tendo gastado o provérbio “de Julio Cesar” com os críticos de Arrigo “Muitos Negros” Sacchi, Carlo Ancelotti dificilmente voltará a usá-lo diante da proverbial dificuldade dos técnicos da seleção da CBF com o gosto popular. Não depois de aprender a diferença entre a antiguidade e a primeira metade do século XX.