Na denúncia dos golpistas, um grande mérito e uma grande contradição
Sobre uma contradição gritante entre o inquérito do golpe/denúncia de Gonet, de um lado, e, do outro, o depoimento do próprio general que teria salvado a Democracia.

O padre José Eduardo de Oliveira e Silva, indiciado por golpe de Estado pela Polícia Federal, é um dos que não foram denunciados ao STF nesta terça-feira, 18, pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet. O padre foi às redes sociais comemorar, em latim: “deo gratias” (graças a Deus). Mas quem se importa com um reles sacerdote? Para justa, muito justa, justíssima felicidade geral do país - ou de algo perto da metade dele -, importa é que o grande cardeal do golpe está agora a um passo de virar réu por organização criminosa armada e abolição violenta do Estado Democrático de Direito, entre outros crimes, e está mais perto da prisão.
O grande mérito tanto do inquérito do golpe produzido pela PF quanto da denúncia dos golpistas oferecida por Paulo Gonet é justamente este: a comprovação, por A mais B, de que Jair Bolsonaro foi de fato o principal articulador, o grande cabeça da tentativa frustrada de golpe de Estado em 2022, incluindo o seu rebote, o ataque do 8/1 de 2023 à Praça dos Três Poderes; a produção de provas cabais de que Bolsonaro seria o principal beneficiário do putsch inconcluso, não consumado, ainda que não fosse o único que intentasse, via intentona, manter-se no poder.
As Forças Armadas do Brasil - os CNPJs, não alguns CPFs - voltaram ao centro do poder político do país participando do golpe de 2016 contra Dilma Rousseff e, ato contínuo, do governo Michel Temer, três décadas após o fim da ditadura. Depois, entraram de coturno no lawfare contra Lula, com direito ao comando do Exército ameaçando publicamente o STF a fim de que Lula não disputasse as eleições de 2018 contra Bolsonaro. Com Bolsonaro eleito em eleição sem Lula, imiscuíram-se os militares na estrutura governamental ainda mais do que no tempo da ditadura. Na trama golpista de 2022, as estruturas militares - os CNPJs, ainda que por mãos dos CPFs que estavam no comando - participaram das duas fases da pavimentação do terreno para o bote final: a campanha de envenenamento da população contra o TSE e as urnas eletrônicas e o esforço para a manutenção dos acampamentos golpistas na frente dos quartéis.
O bote final não veio, por um triz. E não veio, segundo a PF e Gonet, porque o à época comandante da Força Aérea Brasileira, o tenente-brigadeiro do ar Carlos de Almeida Baptista Júnior, e principalmente o então comandante do Exército, general Marco Antonio Freire Gomes, recusaram-se a dar o passo sem volta. Isso ao contrário do comandante da Marinha em 2022, o almirante de esquadra Almir Garnier Santos, que teria “tanques prontos no arsenal” para o passo sem volta e foi indiciado pela PF e, agora, denunciado por Gonet.
Quanto aos meios de provas e provas materiais de que as cúpulas militares, principalmente do Exército, envolveram-se nos passos anteriores da trama golpista, de que cooperaram com o cardeal do golpe no início e meio da conspiração que, nas palavras da denúncia de Paulo Gonet, “imporia ao país a permanência no poder do presidente não reeleito”; quanto a essas provas, uma contradição gritante entre o inquérito da PF/denúncia da PGR, de um lado, e o depoimento do próprio general que teria salvado a Democracia, do outro, indica que houve decisão da PF e de Gonet para solenemente ignorá-las.
No dia 11 de novembro de 2022, horas após o Ministério da Defesa de Bolsonaro apresentar o resultado da sua “auditoria” das eleições, sem apresentar prova de fraude nas urnas eletrônicas - mas reafirmando suspeitas sobre a lisura do processo eleitoral -, Freire Gomes, Garnier e Baptista Junior divulgaram uma nota conjunta intitulada “Às Instituições e ao Povo Brasileiro”. Justamente no momento em que os acampamentos golpistas perdiam força, apareceram os comandantes das três Forças declarando, na nota, apoio ao “povo brasileiro” que pedia “intervenção militar” contra a eleição de Lula e ameaçando com o “cumprimento das nobres missões de Soldados Brasileiros” as instituições que tentassem mandar para casa quem estava pedindo golpe na frente dos quartéis.
A nota enfileirou “recados” ao STF, TSE e Alexandre de Moraes, citando “ações condenáveis de indivíduos ou entidades que alimentem a desarmonia na sociedade”; reclamando “atenção às demandas legais e legítimas da população”; instruindo sobre “a importância da independência entre os poderes”; e falando em “corrigir descaminhos autocráticos”.
Ainda naquele 11 de novembro de 2022, o tenente-coronel Mauro Cid enviou mensagem de áudio ao general Freire Gomes relatando que “o pessoal elogiou muito” a nota; que “eles estão sentindo o respaldo das Forças Armadas”; que, com a nota, “eles estão se sentindo seguros para dar um passo à frente”; que o passo à frente seria puxar o “movimento” para o “Congresso, STF, Praça dos Três Poderes”.
(Vamos fingir que não acabamos de ver o notório ajudante de golpe Mauro Cid informando o então comandante do Exército, quase dois meses antes do 8/1, sobre o plano do “movimento” de fazer o caldo do golpismo derramar, como derramou tragicamente, na Praça dos Três Poderes. Vamos em frente).
No feriado de 15 de novembro, quatro dias após a divulgação da nota “Às Instituições e ao Povo Brasileiro”, quatro dias após o apito de cachorro das Três Armas, 100 mil pessoas pediam golpe de Estado na Praça dos Cristais, na frente do QG do Exército, em Brasília, no auge dos atos golpistas na frente dos quartéis.
Agora, com base na delação de Mauro Cid, Paulo Gonet afirma na denúncia enviada nesta terça ao STF que os comandantes militares divulgaram a nota “Às Instituições e ao Povo Brasileiro” a contragosto, por ordem de Bolsonaro, que, de acordo com a denúncia, teria exigido um “sinal de aquiescência das Forças Armadas aos acampamentos espalhados pelo país”.
No entanto, não foi bem isso o que o general Freire Gomes disse à PF em depoimento dado em março do ano passado no âmbito do inquérito do golpe.
Quando perguntado pela PF sobre “quais foram as circunstâncias que levaram o depoente e os outros dois comandantes a assinar e publicar a nota ‘Às Instituições e ao Povo Brasileiro’”, Freire Gomes respondeu que ele, Baptista Júnior e Garnier “tinham o objetivo de passar mensagem de pacificação à população e às instituições; que queriam demonstrar que as Forças Armadas atuaram com isenção no processo eleitoral e que o foro adequado para a discussão seria o Congresso Nacional e não as instalações militares; que entenderam que precisavam dar uma resposta institucional à sociedade como um todo”.
O general Freire Gomes disse ainda à PF, e depois assinou o depoimento, que a nota foi elaborada e divulgada “por consenso dos três comandantes”.
Afora a descrição da nota feita por Freire Gomes em seu depoimento, extraída das crônicas de Nárnia, das duas, uma: ou o procurador-geral Paulo Gonet está “enganado” sobre o episódio central da trama golpista que foi a divulgação da nota “Às Instituições e ao Povo Brasileiro” - e, no geral, sobre a cúpula das Forças Armadas não ter aderido à trama golpista de Bolsonaro -, ou o general Freire Gomes mentiu à PF, mesmo sob compromisso de dizer a verdade e para proteger… Jair Bolsonaro.
Três anos depois, nesta quarta-feira, 19, após a denúncia de Gonet, o Ministério da Defesa do governo Lula correu para divulgar uma nota também, esta dizendo que “a denúncia da Procuradoria-Geral da República é importante para distinguir as condutas individuais e a das Forças Armadas. A avaliação do ministro José Múcio Monteiro é de que a apresentação da denúncia é mais um passo para se buscar a responsabilização correta, livrando as instituições militares de suspeições equivocadas”.
“Suspeições equivocadas”, ainda que as instituições militares tenham atuado sistematicamente, ao longo do século XX e nos últimos anos, como organização criminosa armada violadora do Estado Democrático de Direito, mas sempre - “deo gratias” - abençoadas com toda sorte de livramentos.
“Mostrem que era sistemático”, disse o editor do Boston Globe, Marty Baron, em cena do filme Spotlight, quando informado por jornalistas do Globe de que vários padres de Boston tinham abusado sexualmente de crianças. “Parece que vamos atrás do Law”, emenda Ben Bradlee Jr., referindo-se a Bernard Law, cardeal este não do golpe, mas da Arquidiocese de Boston. Baron pensa, suspira, dá a linha:
“Nós vamos atrás do sistema”.