Não é possível ceder aos vampiros
Nova tentativa de golpe, agora promovida por parlamentares que "passaram de todos os limites", exige a devida punição.

Eles comem tudo, eles comem tudo,
Eles comem tudo e não deixam nada.
Zeca Afonso, “Vampiros”
Foi uma repetição do 8 de Janeiro, com a diferença de que ali ninguém quebrou nada a não ser o decoro, essa mercadoria já há tanto tempo tão escassa. Seguindo à risca a conduta de seu líder, o bando de parlamentares passou de todos os limites, com a certeza de que nada lhe aconteceria.
Foram 30 horas de motim – até a Folha de S.Paulo nomeou assim, talvez esquecida do editorial que, na véspera, defendia a “liberdade de expressão” de Bolsonaro, tão injustiçado com a prisão domiciliar à beira de sua piscina em Brasília, tão infeliz por não poder continuar a açular a manada e a sustentar ações lesa-pátria no exterior.
Senadores acorrentaram-se à mesa, deputados taparam boca, ouvidos e olhos com esparadrapo, alguns empunhavam a Bíblia. No meio de tantos senhores de terno e gravata, a deputada de tranças louras e tiara florida na cabeça – esse bucólico símbolo de homenagem às mulheres nazistas –, que já se deixou fotografar exibindo um fuzil e vestindo camiseta com dizeres ameaçadores, protagonizou a cena mais emblemática da noite, ao levar sua filha bebê para amamentar na cadeira da presidência da Câmara.
(Musas do golpe: primeiro a cabeleireira do batom na estátua, agora a mãe zelosa e guerreira, a imitar o gesto de parlamentares feministas, invertendo-lhe o sentido, usando a criança como escudo contra uma possível ação da Polícia Legislativa. Quem poderia imaginar que, séculos depois, Marianne empunharia a bandeira fascista?).
No fim, os porta-vozes dessa segunda tentativa de golpe anunciaram vitória, iniciando a guerra de versões e de nervos típica dessas horas. Sabe-se lá o que será verdade no acordo que permitiria (permitirá?) o retorno à rotina parlamentar: o portal Poder360º informa que o líder do PL, deputado Sóstenes Cavalcante, “pediu perdão ao presidente da Casa, Hugo Motta”, dizendo que não foi “correto no privado” com ele e negando a existência de acordo para pautar o projeto de anistia aos envolvidos na tentativa de golpe de 8 de Janeiro. Já Malu Gaspar, no Globo, afirma que houve sim esse acordo, mas foi firmado com o antigo presidente da Câmara, Arthur Lira, à revelia de Motta.
Malabarismos e dissimulações à parte, certo é que esse grupo está determinado a impor a anistia que livraria Bolsonaro da cadeia e, de quebra, beneficiaria o bando de desordeiros que tocou o terror na Praça dos Três Poderes, há dois anos e meio.
Agora, com o respaldo do governo dos EUA.
Quando foi eleito, em segundo turno, por pequena margem, Lula já sabia da composição do novo Congresso. Sabia que era pior ainda do que o anterior. No entanto, optou por prosseguir em sua tradicional tática de “conversar, conversar, conversar”, na tentativa de estabelecer uma “base aliada” que, entretanto, sistematicamente ignorou acordos e lhe impôs derrotas.
Desde o início do ano o cenário internacional se alterou radicalmente, para pior, com a vitória do Agente Laranja. Mas a ofensa explícita à soberania nacional acabou favorecendo o governo, porque mexer com os brios patrióticos não costuma ser bom negócio, nem quando se trata de humilhar quem tem complexo de vira-lata. Porém, a tropa de parlamentares que, à maneira de seu líder, bate continência para a bandeira imperialista persistiu atuante, a ponto de ter protagonizado recentemente uma cena de sabujismo explícito a Trump durante uma sessão da Câmara, e apoia o tarifaço que, a se manter – e se não houver alternativas equivalentes de comércio com outros países –, promete provocar milhares de demissões e, consequentemente, uma grave crise social.
São, ostensivamente, traidores da pátria, ainda que brandindo Bíblias, pedindo orações pelo bem do Brasil. Não podem sair ilesos de mais esse atentado à nossa já tão frágil democracia.
Ceder aos vampiros* é um erro fatal, porque eles são sempre insaciáveis. Disso, aliás, já sabia Zeca Afonso, que, bem antes do 25 de Abril em Portugal, alertava:
Se alguém se engana com seu ar sisudo
E lhes franqueia a porta à chegada,
Eles comem tudo, eles comem tudo,
Eles comem tudo e não deixam nada.
*Nada pessoal, claro, contra o deputado Luiz Fernando Cardoso (MDB-SC), que adotou “Vampiro” como nome de urna e se elegeu em 2022. Aliás, ao se apresentar na Câmara, explicou aos que, não sem razão, estranhariam aquele nome: tratava-se de um apelido de infância, que os amigos lhe pespegaram quando levou um tombo. O que tem o tombo a ver com o apelido, é um mistério que não cabe desvendar aqui. Vampiro é bolsonarista assumido, mas, ao que se possa verificar, não estava entre seus metafóricos homônimos na sublevação parlamentar golpista desta semana.
Boa noite
Com a palavra o
Conselho Tutelar
De
Brasília DF