'Não os deixaremos destruir o país'
A determinação de um jornalista sobre a crescente ameaça fascista em Portugal resume a necessidade de derrotar a barbárie em nome da civilização.

“Com todo o respeito, a pergunta que me fez é ridícula”.
Quem diz uma coisa destas evidentemente falta com o respeito pela outra pessoa. Flagrante e frontalmente. Porém não se trata de uma contradição, mas de método.
Na quinta-feira, 11, uma deputada do partido de extrema-direita português, que participava de um programa jornalístico num canal de televisão, reagiu desta forma a uma pergunta da apresentadora sobre um erro grosseiro cometido pelo chefe desse partido, num vídeo em que ele acusava o presidente do país de ir à Alemanha comer hambúrgueres às expensas do povo.
(O referido chefe confundiu Bürgerfest, a tradicional Festa dos Cidadãos, com um festival de hambúrgueres, e comandou sua bancada de 60 deputados, a segunda maior do Parlamento, na rejeição à autorização da viagem do presidente, que mesmo assim pôde comparecer ao evento porque os demais partidos não tiveram qualquer dúvida quanto ao sentido da visita. Depois apagaria o vídeo, diria que cometeu um lapso, mas que o erro decorreu da forma como o documento foi apresentado à Assembleia: faltaria o trema que distinguiria “bürger”, cidadão, de “burger”, o famoso sanduíche. E, claro, voltou à carga contra o presidente, que teria viajado muito mais do que o normal durante o seu mandato, que vai chegando ao fim).
A deputada, no mesmo programa, aproveitou para desqualificar a imprensa, exigindo um jornalismo “um pouco mais sério”.
“A verdadeira oposição é a mídia. E a maneira de lidar com ela é jogar merda no ventilador”, disse há alguns anos Steve Bannon, o principal ideólogo desse movimento que continua a se espalhar pelo mundo, fazendo reviver o ideário que jamais foi sepultado, apesar de sua derrota, há oitenta anos, que encerrou a Segunda Guerra Mundial.
Brasileiros conheceram bem este método durante a campanha e o governo de Bolsonaro, que se fartou de atacar e ofender jornalistas e os confinou num “cercadinho” do lado de fora do Palácio do Planalto, onde o presidente reunia também um grupo de apoiadores e o insuflava para xingar e ameaçar os repórteres.
Nunca houve reação à altura. Mas não teria sido difícil, não fosse o receio, o excesso de prudência, quem sabe a covardia de quem poderia, e deveria, agir.
O caso português não difere muito do brasileiro no que diz respeito à responsabilidade da mídia na amplificação das ações desses políticos, já fartamente assinalada em reportagens e estudos acadêmicos e denunciada por políticos do campo democrático. A tática é sempre a mesma: causar tumulto e falar barbaridades para chamar a atenção e virar notícia, contando com o critério que elege o escândalo, a agressividade e a ofensa como forma de atrair audiência, independentemente das consequências políticas que possa produzir. Ou, pelo contrário, visando exatamente essas consequências, sob o argumento de que é preciso dar voz a todos.
(Valeria a pena pensar por quê o comportamento agressivo é popularmente aceito como sinal de autenticidade, em contraste com a urbanidade, que esconderia hipocritamente os verdadeiros sentimentos. Portanto, quanto mais rude, tosco, grosseiro e violento, mais legítimo. Quanto mais educado, polido e respeitoso, mais suspeito. É o triunfo da barbárie sobre a civilização?).
Nas avenidas pelas quais a barbárie se espalha, Portugal tem uma particularidade: um partido como o Chega, que em seu programa defendia princípios flagrantemente inconstitucionais, jamais poderia ter sido autorizado. Mas foi, e já em 2019, quando foi criado, conseguiu eleger seu líder para a Assembleia da República. Desde então, aproveitando equívocos fatais que levaram a duas eleições antecipadas, cresceu exponencialmente e em apenas seis anos conquistou 60 vagas, tornando-se a segunda força no Parlamento. A mídia, que tanto lhe abriu espaço, é agora obrigada a convidar seus representantes para participar de debates ou comentar notícias nos telejornais.
Mas seria possível estabelecer limites básicos de respeito e decência. Por exemplo, deixar claro que ofensas não serão aceitas. Cortar imediatamente o microfone de quem se comportar como essa deputada que, “com todo o respeito”, desrespeitou grosseiramente a apresentadora. Encerrar um “debate” que não é nada mais que um palco para a disseminação de mentiras e ofensas, um desserviço ao interesse público que a imprensa, de modo geral, em seus múltiplos meios, jura defender.
Não vai acontecer – por receio, excesso de prudência, covardia –, mas deveria. Porque é muito grave o que vem acontecendo no país.
Num artigo no semanário Expresso, o jornalista Daniel Oliveira escreveu que, em Portugal, “a extrema direita chegou mais tarde, cresceu mais depressa e tem tudo para manter a trajetória acelerada. Aberta a comporta, o caudal não encontrará a resistência institucional, cultural e política que permitiu outros países retardarem a sua chegada ao poder”.
“Isto vai ser rápido” era o título do artigo. Foi publicado em 29 de maio, na esteira das últimas eleições, em que o Chega ampliaria ainda mais sua bancada e ultrapassaria o Partido Socialista. Em 11 de setembro, o Diário de Notícias publicou pesquisa em que essa representação de extrema-direita aparece em primeiro lugar nas intenções de voto, com 26,8%, contra 25,9% da Aliança Democrática, que governa o país, e 23,6% do PS. Tudo dentro da margem de erro, mas indicativo de uma tendência.
Ao comemorar o resultado na eleição de maio, o líder do Chega disse que não descansaria até conquistar o poder. Na época, falava em ser primeiro ministro. Mas agora vem acenando com a possibilidade de concorrer à presidência, no pleito de janeiro do ano que vem. Na atual conjuntura, teria grandes chances de vencer.
Tudo muito rápido. Rápido demais para um país que, até recentemente, tinha os cravos da sua revolução de abril como um símbolo mundial de derrota do fascismo.
Aliás, justamente no ano que vem completam-se 100 anos do golpe que instaurou a ditadura de quase meio século. “Eles falham há 50 anos. Deem-me uma oportunidade”, dizia um dos cartazes do Chega nas legislativas de maio. “Salvar Portugal” seria, portanto, retornar aos tempos de Salazar.
Coincidentemente ou não, no dia seguinte ao da divulgação da pesquisa, o jornalista Miguel Szymanski publicou, em sua página no Facebook, um texto contundente em defesa dos princípios elementares da democracia.
Copio aqui uma parte, com o arremate que é o compromisso de todos quantos se empenham na luta por um mundo menos miserável:
Portugal está longe de ser uma sociedade perfeita. Mas passámos 51 anos a melhorá-la, saímos duma ditadura em que as pessoas críticas, as que expressassem a sua opinião, contrária ao poder, eram perseguidas, presas, torturadas e, no limite, se insistissem, assassinadas.
(...)
Com todos os defeitos deste país, com toda a urgência em inverter erros políticos graves – a começar pela privatização de sectores chave –, com uma comunicação social excessivamente dominada por empresários dúbios, com a influência inaceitável de grupos privados sobre o processo político, com tudo isso, ainda vivemos numa democracia, em construção, em que continuamos a acreditar na liberdade, na tolerância, na igualdade, na justiça, na solidariedade, na saúde pública, na educação, na cultura.
Não vamos entregar tudo isso a um grupo de oportunistas que, antes de chegar ao poder, já tem cadastro [isto é, ficha criminal], a gente que cria imagens de inimigos que não existem, a manipuladores que evocam uma insegurança artificial, que alimentam o medo, que promovem a mentira. A partidos que querem destruir o que se conseguiu e conquistou em cinco décadas, para imporem um regime intolerante, autoritário e prepotente, um regime assumidamente inspirado nos EUA de Trump, na Hungria de Orban e na Argentina de Milei, para tentarem impor uma sociedade com os valores dos seus patrocinadores, de fanáticos das igrejas de centros comerciais, de empresários retrógrados.
Não queremos o retrocesso do papel das mulheres na sociedade, com tanto ainda para estabelecer a sua igualdade, não queremos um regime assente na superioridade de homens que se julgam burgueses e que não passam de burgessos. Não os deixaremos destruir o país.