Ninguém perguntou isto aqui ao general?
Nenhum relato sobre o depoimento de Freire Gomes de nenhum jornalista que acompanhou a oitiva dá conta de que Moraes tenha interpelado o general sobre a nota “Às instituições e ao povo brasileiro".
Foi épico o pito que Alexandre de Moraes deu no general Freire Gomes na última segunda-feira, 19, quando, em depoimento como testemunha no âmbito da ação penal do golpe, o ex-comandante do Exército tentou aveludar o golpismo não apenas do ex-comandante da Marinha, Almir Garnier, mas também de Jair Bolsonaro, em contradição com o depoimento dado pelo general à Polícia Federal ainda na fase de investigação.
Foi épico. Ok. Porém, nenhum relato sobre o depoimento de Freire Gomes de nenhum jornalista que acompanhou a oitiva dá conta de que Moraes tenha tentado esclarecer uma outra contradição, e não uma qualquer.
Trata-se de uma incompatibilidade entre aquele depoimento do general Freire Gomes è PF e a denúncia dos golpistas apresentada ao STF pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet. Trata-se de um contrassenso tão gritante quanto grave, porque pode estar ali a chave para trazer à luz de uma vez por todas o papel das Forças Armadas, como instituições, na conspiração golpista de 2022 e no seu rebote, o 8 de janeiro de 2023.
Aos fatos:
No dia 11 de novembro de 2022, horas após o Ministério da Defesa de Bolsonaro apresentar o resultado da sua “auditoria” das eleições, sem apresentar prova de fraude nas urnas eletrônicas - mas reafirmando suspeitas sobre a lisura do processo eleitoral -, Freire Gomes, Garnier e o então comandante da FAB, Baptista Junior, divulgaram uma nota conjunta intitulada “Às Instituições e ao Povo Brasileiro”.
Justamente naquele momento, quando os acampamentos golpistas perdiam força, apareceram os comandantes das três Forças declarando, naquela nota, apoio ao “povo brasileiro” que pedia “intervenção militar” contra a eleição de Lula e ameaçando com o “cumprimento das nobres missões de Soldados Brasileiros” as instituições que tentassem mandar para casa quem estava pedindo golpe na frente dos quartéis.
A nota enfileirou “recados” ao STF, ao TSE e a Moraes, citando “ações condenáveis de indivíduos ou entidades que alimentem a desarmonia na sociedade”; reclamando “atenção às demandas legais e legítimas da população”; instruindo sobre “a importância da independência entre os poderes”; e falando em “corrigir descaminhos autocráticos”.
Ainda naquele 11 de novembro de 2022, o tenente-coronel Mauro Cid enviou mensagem de áudio ao general Freire Gomes relatando que “o pessoal elogiou muito” a nota; que “eles estão sentindo o respaldo das Forças Armadas”; que, com a nota, “eles estão se sentindo seguros para dar um passo à frente”; que o passo à frente seria puxar o “movimento” para o “Congresso, STF, Praça dos Três Poderes”.
Vamos falar português? Ali, era o notório ajudante de golpe Mauro Cid informando o então comandante do Exército, quase dois meses antes do 8/1, sobre o plano do “movimento” de fazer o caldo do golpismo derramar, como derramou tragicamente, com a mão amiga dos signatários da nota “Às Instituições e ao Povo Brasileiro”, na Praça dos Três Poderes.
No feriado de 15 de novembro, quatro dias após a divulgação da nota “Às Instituições e ao Povo Brasileiro”, quatro dias após o apito de cachorro das Três Armas, 100 mil pessoas pediam golpe de Estado na Praça dos Cristais, na frente do QG do Exército, em Brasília, no auge dos atos golpistas na frente dos quartéis.
Com base na delação de Mauro Cid, Paulo Gonet afirmou na denúncia dos golpistas enviada em fevereiro ao STF que os comandantes militares divulgaram a nota “Às Instituições e ao Povo Brasileiro” a contragosto, por ordem de Bolsonaro, que, de acordo com a denúncia, teria exigido um “sinal de aquiescência das Forças Armadas aos acampamentos espalhados pelo país”.
Mas não foi isso o que o general Freire Gomes disse no depoimento dado em março do ano passado à PF.
Quando perguntado pela PF sobre “quais foram as circunstâncias que levaram o depoente e os outros dois comandantes a assinar e publicar a nota ‘Às Instituições e ao Povo Brasileiro’”, Freire Gomes respondeu que ele, Baptista Júnior e Garnier “tinham o objetivo de passar mensagem de pacificação à população e às instituições; que queriam demonstrar que as Forças Armadas atuaram com isenção no processo eleitoral e que o foro adequado para a discussão seria o Congresso Nacional e não as instalações militares; que entenderam que precisavam dar uma resposta institucional à sociedade como um todo”.
O general Freire Gomes disse ainda à PF, e depois assinou o depoimento, que a nota foi elaborada e divulgada “por consenso dos três comandantes”.
Afora a descrição do teor da nota feita por Freire Gomes em seu depoimento, extraída das crônicas de Nárnia, das duas, uma: ou o procurador-geral Paulo Gonet está “enganado” sobre o episódio central da trama golpista que foi a divulgação da nota “Às Instituições e ao Povo Brasileiro” - e, no geral, sobre a cúpula das Forças Armadas não ter aderido à trama golpista de Bolsonaro -, ou o general Freire Gomes mentiu à PF, mesmo sob compromisso de dizer a verdade e para proteger… Jair Bolsonaro.
A PF não indiciou o general Freire Gomes por golpe de Estado, tampouco Paulo Gonet denunciou o general.
Não é possível, simplesmente não é possível que Alexandre de Moraes tenha se somado à PF e a Gonet na solene desconsideração deste pequeno grande detalhe que - vamos falar português de novo? - pode levar o general Freire Gomes a sentar-se, também ele, no banco dos réus.
Se aconteceu, ou melhor, se não aconteceu o esclarecimento deste pequeno grande detalhe no depoimento de Freire Gomes a Moraes, então, apesar dos pitos épicos, não é verdade que há vontade de tudo esclarecer.