O acordo
“Fiz e faria de novo”, disse o líder do governo no Senado, Jaques Wagner, sobre o arranjo que resultou na votação — e aprovação — da anistia disfarçadinha para Bolsonaro e generais golpistas.

O Senado da República aprovou nesta quarta-feira, 17, o chamado PL da Dosimetria, anistia sem gordura trans para Jair Bolsonaro e oficiais generais das Forças Armadas que tentaram dar um golpe de Estado no Brasil apenas três anos atrás.
O líder do governo Lula no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), fez um acordo com o golpismo que funcionou assim: os governistas não se opuseram à pautação do PL do Incentivo a Outro Golpe em troca da aprovação na Casa de uma pauta econômica de interesse do governo, a redução de incentivos fiscais e aumento da tributação de bets e fintechs.
O quid pro quo garantiu mais de R$ 20 bilhões extras para o Orçamento do ano que vem. O governo saiu da frente para a anistia passar disfarçadinha a troco de montante equivale à metade, não mais que a metade do que está previsto no Projeto de Lei Orçamentária de 2026 para emendas parlamentares impositivas — mais de R$ 40 bilhões.
A imprensa corporativa afirma, em uníssono, que o acordo teve aval do governo. O governo nega que o acordo tenha se dado com Lula, com tudo, dizendo que a articulação foi obra de um engenheiro só, Jaques Wagner. O próprio Wagner matou no peito, e com orgulho, a responsabilidade pela ignomínia: “em relação ao acordo que fiz, fiz e faria de novo”.
A esta, o líder emendou uma segunda sapateada na fuça e na inteligência das dezenas de milhares de pessoas que foram às ruas no último domingo, 14, contra o PL da Dosimetria: “não negociei mérito, negociei procedimento”.
Apenas o procedimento, jamais o mérito, foi também o que o caçador aceitou negociar com o urso na fábula O acordo, uma das “Fabulas fabulosas” publicadas por Millôr Fernandes em 1964, ano de golpe de Estado e quando o ex-governador, ex-ministro, fundador e primeiro presidente do PT na Bahia ainda era aluno do Colégio Militar do Rio de Janeiro.
“Esta história é do tempo em que os animais falavam. Percebe-se?”, anotou Millôr sobre O acordo — não o acordo que o lobo solitário fez com o golpismo no Senado e que faria outra vez, e outra vez, e outra vez, mas sim a fábula na qual o caçador aprende da pior maneira que, diante das feras, pactuar procedimento dá na mesma merda que ceder no mérito.
Com vocês, Millôr Fernandes:
O acordo
Vestido como caçador, o homem caçava. Estava metido no mais negro da floresta, e caçava. Mas não procurava qualquer caça, não. Procurava uma caça determinada, capaz de lhe dar uma pele que aquecesse suas noites hibernais. E procurava, procura que procura, eis senão quando, numa volta da floresta, depara nada mais nada menos que com um urso. Os dois se defrontam. O caçador apavorado com a selvageria do animal. O animal apavorado pela civilização — em forma de rifle — do caçador. Mas foi o urso quem falou primeiro.
— Que é que você está procurando?
— Eu — disse o caçador — procuro uma boa pele com a qual possa abrigar-me no inverno. E você?
— Eu — disse o urso — procuro algo que jantar, porque há três dias que não como.
E os dois se puseram a pensar. E foi de novo o urso quem falou primeiro: — Olha, caçador, vamos entrar na toca e conversar lá dentro que é melhor.
Entraram. E, dentro de meia hora, o urso tinha o seu almoço e, consequentemente, o caçador tinha o seu capote.



