'O assunto é GAZA e quem ainda não entendeu isso que vá para o inferno'
O desabafo de Ethel Feldman evidencia a pobreza da pequena política, que não consegue associar as questões cotidianas a uma causa universal
Inúmeros e eloquentes artigos e reportagens têm sido publicados em Portugal sobre o genocídio em Gaza. Apenas dois exemplos mais recentes: “O nosso fim em Gaza”, de Alexandra Lucas Coelho, jornalista e escritora com vasta experiência no Oriente Médio e autora de Gaza está em toda parte, lançado em maio deste ano, e “Gaza, a ignomínia”, de José Gil.
Mas eu queria chamar a atenção para o que Ethel Feldman publicou em sua página no Facebook na última terça, 7 de outubro, quando se completaram dois anos do ataque terrorista do Hamas, que desencadeou – ou serviu de pretexto para – a ofensiva genocida israelense.
Isto:
NA MINHA FAMÍLIA, AO HOLOCAUSTO, SOBREVIVERAM:
a minha bisavó materna, a minha avó e três irmãs, o meu avô, sua mãe e duas irmãs. O pai do meu avô foi morto à paulada por um grupo de estudantes polacos quando saía da sinagoga, em Varsóvia.
Quem não conseguiu fugir, foi enviado para os campos de concentração. Crianças, velhos, mulheres e homens. Família que me foi vedada.
Quem sobreviveu, para seguir em frente, abafou a dor. A minha bisavó materna tirou a peruca e disse: Deus Não Existe.
NUNCA MAIS, ouvi desde criança. NUNCA MAIS, orientou a minha vida. NUNCA MAIS, é o farol do qual não abdico.
No dia 7 de Outubro de 2023, tremi. Benditos mãe e pai que já não estavam cá para viver esse novo horror. Dois anos antes a minha mãe assistia às notícias sobre a Palestina e colocava as mãos na cabeça: não foi por isto que lutei toda a minha vida.
Com o 7 de Outubro, GAZA cresceu de dor. Nunca ousei, por respeito às vítimas, colocar na balança uns e outros mortos. É imperativo que se reconheça o terror de ambos.
GAZA continuou a crescer de dor enquanto Israel enlameava os nossos mortos.
NUNCA MAIS, voltou a ser um grito desesperado.
HOJE, dia 7 de Outubro de 2025, as famílias de Israel continuam a sofrer. HOJE, dia 7 de Outubro de 2025, os palestinos continuam a morrer e os que sobrevivem acumulam sofrimento.
Perguntei-me, desde que me conheço capaz de pensar, como foi possível o mundo só acordar depois de um povo ter sido praticamente dizimado. Hoje entendo. O mundo está a fazer o mesmo com os palestinos.
O assunto, senhores, é este: GAZA e o GENOCÍDIO.
De cada vez que vejo a direita detonar contra os integrantes da flotilha, VOMITO.
Ontem, a desilusão: sobre a flotilha, Luis Carneiro [deputado e secretário-geral do Partido Socialista] não teve mais nada a acrescentar senão ter-se congratulado pelos portugueses terem chegado sãos e salvos. Sobre GAZA, NADA.
Nas autárquicas [as eleições municipais em Portugal, no próximo domingo, 12 de outubro] o assunto também continua a ser GAZA porque GAZA fala do que somos enquanto espécie.
O assunto é GAZA e quem ainda não entendeu isso que vá para o inferno.
Ethel Feldman, que nasceu no Brasil e foi viver em Portugal aos 16 anos, é coautora, com o antropólogo Miguel Vale de Almeida, de pedra branca – Rosa Feldman, uma história de vida do século XX, livro publicado em 2022. Ethel é filha de Rosa, a senhora já idosa que levava as mãos à cabeça ao ver pela TV o que ocorria na Palestina dois anos antes do ataque do Hamas e dizia que não havia sido por isto que lutara a vida toda.
A orelha do livro resume essa trajetória:
Rosa Feldman nasceu no Brasil, filha de emigrantes judeus da Polônia na década de vinte do último século, e cresceu e viveu parte da sua vida em duas comunidades que se cruzavam: a da judeidade iídiche e a do ideal comunista. Casou com um escritor português que conheceu num evento político no Leste Europeu e que com ela se mudou para o Brasil, onde já viviam outros intelectuais refugiados da ditadura portuguesa, até a mudança definitiva para Portugal. A vida de Rosa percorre a história do século XX, do antissemitismo europeu vivido pelos seus pais e antepassados, dos fascismos, dos ideais socialistas e comunistas. Percorre também a história das pressões a que os judeus foram sujeitos e das opções com que se confrontaram: sionismo, integração nas sociedades nacionais ou internacionalismo cosmopolita?
Uma vida inteira dedicada à causa da emancipação humana, carregando um sofrimento indizível, jamais poderia suportar o que está acontecendo agora.
A força do desabafo de Ethel, filha de Rosa, não está apenas na vigorosa denúncia aliada ao testemunho, mas no que ressalta sobre o compromisso de uma campanha política com uma causa maior.
Ora, é verdade, o Partido Socialista optou por sair pela tangente, sob o argumento de que precisava manter o foco no interesse dos portugueses em suas questões domésticas, porque se tratava de eleições municipais. Então a preocupação teria de ser com a situação do sistema público de saúde, com as escolas, a moradia, os transportes, o lixo nas ruas, o buraco na calçada.
A política vista como questão administrativa apenas.
Numa única frase, Ethel faz uma síntese perfeita da crítica à pequena política, rasteira, mesquinha, incapaz de ligar os problemas cotidianos a uma causa universal. Incapaz de politizar, no sentido mais denso da palavra.
Essa incapacidade é especialmente grave no contexto de ascensão da extrema-direita que Portugal vive atualmente – aliás, certamente contribuiu para esse quadro. Como se sabe, a mais recente ação para denunciar o genocídio em Gaza foi a da flotilha que reuniu mais de 400 integrantes rumo à região, para entregar água e mantimentos, e que foi interceptada – ilegalmente, em águas internacionais. Todos foram presos e acabaram repatriados. Quatro eram portugueses. Entre eles estava a deputada Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda.
Ainda durante a expedição, o ministro da Defesa e líder do CDS-PP, de minúscula representação parlamentar, declarou que se tratava de uma iniciativa “irresponsável em direção a um território que é ocupado por uma organização terrorista”, e concluía que os ativistas apoiavam aquela organização. “Peço desculpa, há quem esteja do lado dos terroristas, há quem esteja do lado da liberdade, eu estou do lado da liberdade”.
André Ventura, líder do partido de extrema-direita Chega, a segunda força na Assembleia da República, reclamou: “A Mariana Mortágua pôs-se nesta situação porque quis. É uma escolha, é legítima. Mas tem custos. Agora aquilo correu mal... e agora o Estado português que arranje forma de os ir buscar, seja por meios militares, seja por financeiros? Nós cá é que vamos pagar isso?”
Pois não, não vão: o Estado português anunciou que os quatro repatriados terão de pagar a conta.
“Um governo decente mandaria a fatura ao genocida”, reagiu Mariana, e disse que pagaria o bilhete, “comprando a prova de que há ministros sem espinha”.
Se havia ainda alguma dúvida quanto à submissão do governo ao Chega, esta decisão a dissipa definitivamente.
É por isso, também, que nenhum partido democrata poderia ignorar que Gaza é inescapável, mesmo quando falamos do buraco da rua ou da bica d’água numa eleição municipal. Porque o que está em jogo é o que somos como espécie.
E quem não entender isso, que vá para o inferno.