O show e a direita que a esquerda gosta
Gaga, negócios e tapumes: números e espetáculo no que sobrou da capital.

A prefeitura do Rio fez uma descoberta da pólvora: a de que pode fazer negócio com o que resta de imagem e imaginário da cidade no trecho minoritário de território ainda não completamente dominado pelo gangsterismo oficialmente reconhecido como tal (embora os gangsterismos no Rio sejam onipresentes, alguns são mais ou menos legalizados).
"Fazer negócio" no sentido contemporâneo prevalecente da atuação estatal: gastar dinheiro e recursos de autoridade e coordenação públicas para viabilizar negócios privados imensos, cheios de privilégios e isenções, dando o pretexto de um "retorno" para "a cidade" cujas métricas são arbitradas ao sabor dos ventos políticos e da cumplicidade e dificuldades das calculadoras pouco científicas da mídia dominante. Arbitram-se números e faz-se uma cidade dormir contente na certeza de que não haverá contrapontos.
"A cidade" que teve "o retorno" é aquela dividida equanimemente entre os bancos patrocinadores, a rede hoteleira, as plataformas de hospedagem, o ramo da restauração, os cofres públicos e os ambulantes, cada qual, claro, ficando com uma parcela umas dez vezes maior que a do segmento seguinte como é "justo" e "normal" no capitalismo de agora ainda mais que no de ontem.
E a política? Essa é a parte mais divertida de se observar. Especialmente se você for dono do capital. A extrema-direita, neste caso um núcleo que parece menor do que o ressentido e frustrado "anti-Madonna", faz o seu papel de "politizar" tortuosamente o não propriamente político. Destila seu ódio, seu rancor e suas fake news fingindo preocupações republicanas e sociais e mal disfarçando sua ainda dificilmente publicável homofobia e repulsa a qualquer forma de música e alegria.
"Do outro lado do ringue" um "progressismo" - ao qual restou como ponto comum uma genérica e às vezes intuitiva e frágil não-identidade com o protofascismo - entusiasmado. Figuras da neoesquerda, treinada há anos e anos na desmobilização e perda de horizontes e imaginação, lançando proclamas de "revolucionário" e "libertário" - palavras que já usamos para as mulheres que lutaram na revolução espanhola e nas heroicas mobilizações grevistas do início do século passado - para o espetáculo.
O espetáculo, por sua vez, não é de música - se há músicos, não se lhes deu por conta, se recebem algo por seu trabalho de origem, deem-se por contentes. Trata-se de uma performance - com seus eventuais méritos e interpretações - vistas por cada um de acordo com o filtro da distância imposta pela desigualdade. É "natural" que haja áreas VIPS - quantas camadas? - em um show público num espaço público e é "natural" que haja seres humanos mais iguais que outros, até porque eles tem o mérito indiscutível de terem conhecidos que tem conhecidos que tem o direito - como os nobres também tinham - de ter acesso às áreas VIPs.
A desigualdade é normalizada, embora o espetáculo só tenha o valor que tem - os recordes, as imagens áreas, a justificativa do investimento publicitário e público - pela presença massiva dos "menos iguais". E os tapumes? Naturais. Fãs em desespero tentando alcançar nacos de micro participações nesta alegria mercantil: ridículos. VIPS: maravilhosos, poderosos, perfeitos!
Desde quando caiu a ficha sobre a decadência econômica e política da ex-capital, lá pelos anos 80, somos periodicamente visitados por estas joint ventures de corporações "artísticas" com ares "transformadores" milimetricamente controlados e ungidos por essa "bênção" coletiva" que nos diz que "ainda somos importantes". Cada evento é o maior e o melhor do mundo e de todos os tempos. E nos sentimos assim um pouco especiais.
Ao lado de tudo isso, vamos mantendo de pé uma das metrópoles mais desiguais, de poder público mais frágil, com um dos maiores percentuais de população, economia e terra em mãos de empresas ilegais altamente imbricadas ao poder público. A maior metrópole pentecostal-mafiosa mãe e pai do bolsonarismo que dança de leque colorido na mão. O atual prefeito é o surfista desta onda. Risonho, dançante, a direita que a esquerda gosta, por sobre um mar que cozinha uma barbárie que tem potencial para ser a vanguarda de um mundo pós-humano, indiferente a todas as faixas de Gaza.
Ninguém deve ser contra festa, alegria, shows. Festa foi e é, muitas vezes, resistência indispensável. Todos podem aproveitar as rebarbas da música do andar de cima, embora as criadas pelo andar de baixo sejam muito melhores e mais genuínas.
Mas ninguém precisa ser zumbi dormente embasbacado acrítico de pirotecnia do dinheiro achando que está diante de alguma novidade maravilhosa, não é? Continuemos a fazer nossas próprias festas. Elas nunca precisaram dos bancos, dos palcos milionários e nem da hipocrisia flutuante e volátil do Eduardo Paes.
Pão e circo...
Não esquente, até no Coliseum tinha area vip...