Rio: as crianças invisíveis do ‘Porto Maravilha’
Aluízio Azevedo narrou há exatos 140 anos, em 1884, o surgimento na Lapa da casa de pensão de Madame Brizard, ameaçadora, “escancarando para a população do Rio de Janeiro a sua boca de monstro”.
No último domingo, 21, no jornal O Globo, a reportagem “infância vulnerável”, de Selma Schmidt, mostrou que mais de 500 crianças vivem entre ratos, esgoto transbordando e brinquedos todos quebrados em dezenas de ocupações na região portuária do Rio, não muito longe da Lapa, excluídas dos projetos de intervenção urbana em curso na região.
Quem leu “Casa de Pensão” e, neste domingo, a reportagem de Selma Schimdt pode ter pensado em outra boca de monstro das mazelas e violências sociais mostrando os dentes para o Rio por trás de um lugar de boa família, como na casa de pensão de Madame Brizard. Esta, esta outra boca de monstro, escancarada para o “Porto Maravilha”.
“Elas [500 crianças] não são blindadas, ficam expostas à violência em todos os aspectos. A começar pela violência de viver em áreas insalubres, em construções precárias. Estão ainda expostas à violência sexual, a maus-tratos. As mães precisam prover, levar alimentos para casa para que a família não passe fome, e não conseguem estar presentes o tempo todo”, disse à reportagem a psicóloga infantil Francilene Torraca.
O nome de uma das ocupações é “Morar Feliz”, que fica a 800 metros do Hotel Intercit Porto Maravilha, um quatro estrelas com “rooftop” equipado com piscina com vista para a Baía de Guanabara; e a um quilômetro da Yup Star, a roda gigante do Rio de Janeiro cujo ingresso chega a custar R$ 189,80 com combo espumante e “fast pass”.
Uma menina de 6 anos de uma outra ocupação, a “Ocupação da Paz”, foi questionada pela reportagem do Globo sobre o que quer ser quando adulta e respondeu que quer “ser trabalhadora”. Uma terceira ocupação fica numa instalação desativada do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) interditada pela Defesa Civil. Nada mais significativo.
“Há uma dupla dimensão de invisibilidade. De um lado, o poder público adota uma política de não reconhecimento das ocupações. De outro essas ocupações se protegem nessa invisibilidade para que permaneçam no Centro”, disse ao jornal O Globo a pesquisadora Bruna Ribeiro, do Observatório das Metrópoles (Ippur/UFRJ).
Procurada pelo jornal, a Secretaria de Habitação do Rio disse em nota que trabalha com a secretaria de Assistência Social para “identificar e cadastrar os ocupantes desses territórios, com o objetivo de desenhar programas”.
“Desenhar programas”, talvez um dia, quem sabe para uma exposição de arte abstrata futurista no Museu do Amanhã.