Se meu Fusca azul falasse
"Quando fica evidente que erramos, simplesmente diga: errei, fiz cagada. Não devemos ficar mentindo. Porque é necessário cultivar a confiança. E a confiança não se ganha com mentiras"
O filme Uma noite de 12 anos estreou no Brasil no dia 27 de setembro de 2018. Assisti ao filme quase um mês depois, no dia 22 de outubro daquele ano, no meu cinema predileto, o da minha universidade: o Cine Arte UFF.
O último filme que eu tinha visto no Cine Arte UFF tinha sido Aquarius, em 2016. Lembro que o clima geral no fim do filme foi de muita raiva, muita indignação, aquele nó na garganta diante da percepção da injustiça, porque o filme e particularmente a sua cena final tinham muito a ver com aquele momento imediatamente pós-impeachment, o golpe durante o qual Jair Bolsonaro homenageou o torturador da golpeada - “o pavor de Dilma Rousseff” -, num mais que perfeito índice de toda a canalhice que pairava sobre o país. Pois Aquarius termina justamente com uma mulher inquebrantável, altiva, em luta contra a injustiça movida por poderosos contra ela, atirando toda a podridão plantada pelos canalhas nas fuças dos canalhas, e termina com a música do Taiguara: “Hoje, trago em meu corpo as marcas do meu tempo. Meu desespero, a vida num momento. A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo”.
Quando voltei ao Cine Arte UFF, foi para ver Uma Noite de 12 Anos, que retrata os inimagináveis suplícios físicos e psicológicos a que três militantes tupamaros, entre eles Pepe Mujica, foram submetidos quando presos políticos da ditadura uruguaia, entre as décadas de 1970 e 1980.
Portanto, ainda ontem.
Uma cena do filme me chamou a atenção: na fase final da ditadura uruguaia, aqueles presos começam a ver um pouco relaxado o regime de total isolamento e confinamento a que por uma década haviam sido submetidos. Um deles, Ñato, quando é deixado sozinho no pátio do presídio, logo é reconhecido por outros presos políticos que estão nas celas que circundam o pátio. Das celas, começam a gritar seu nome: “Ñato! Ñato!”. Pois Ñato começa a simular que recebeu uma bola nos pés e parte com tudo, num ataque alegórico contra a meta adversária. No caso, um portão cheio de guardas. Ele vai encenando dribles, sob aplausos da galera, e finalmente chuta forte. Das celas, a galera grita: “gooool!”. Os guardas, estupefatos, com cara de energúmenos, giram suas cabeças ocas atrás da trajetória da bola imaginária chutada para fora dos muros do presídio.
Estúpidos.
No fim de Aquarius, a plateia do Cine Arte UFF fez um coro vigoroso de “Fora Temer!”. No fim de Uma Noite de 12 Anos, tiveram alguns gritos de “Ele não!”, mas o sentimento geral era diferente daquele de dois anos atrás. As pessoas choravam, se abraçavam, algumas soluçavam, mal conseguiam ter algo a dizer, a gritar. Tinha muita raiva, indignação, tinha medo, mas tinha acima de tudo uma muito doída comoção com a tragédia que se avizinhava, no segundo turno. Uma profunda comoção, ao fim de Uma Noite de 12 Anos, por ver outra noite começando, com indicativos de todos os suplícios próprios das caladas da História. O choro, diria um desses mais cínicos fascistas, o choro é livre. É que a dor é confundida pelos pobres de espírito, energúmenos, estúpidos, a dor é confundida por eles com fraqueza, com resignação, com entregar os pontos.
Acontece que, como disse a mãe de Pepe Mujica ao futuro presidente da República Oriental do Uruguai, visitando-o na prisão, só é derrotado, disse ela, só é derrotado quem desiste.
Ainda ontem, em março, Mujica foi ter com alguns jovens que montaram acampamento perto da sua casa, para render ao Pepe a última homenagem.
“Prestem atenção no que vou dizer a vocês: é inevitável que, como seres humanos, a gente cometa erros, meta os pés pelas mãos. Mas não devemos ficar arranjando desculpas para nos safar da responsabilidade pelos nossos erros. Quando fica evidente que erramos, simplesmente diga: errei, fiz cagada. Não devemos ficar mentindo. Porque é necessário cultivar a confiança. E a confiança não se ganha com mentiras”, disse Mujica aos jovens.
Se o Fusca azul do Pepe falasse, sairia buzinando por aí algumas das últimas palavras do velho militante social: “não se ganha a confiança com mentiras”.