Sem álibis
É de consequências imprevisíveis o comando de caça a brasileiros democratas e progressistas (mas pintados como "extremistas") que deputados bolsonaristas querem montar de dentro do Congresso Nacional.
É de consequências imprevisíveis o comando de caça a brasileiros que deputados federais como Gustavo Gayer (PL-GO) e Nikolas Ferreira (PL-MG) parecem querer montar de dentro do Congresso Nacional, com direito a sugestão para o governo Trump “dar uma olhadinha” no ator Wagner Moura, chamado de “extremista”. Com direito a incitação de perseguição profissional — “demita”, “denuncie” — contra os aludidos como “verdadeiros extremistas”, que é como os bolsonaristas costumam se referir a democratas e favoráveis ao progresso social do Brasil.
A princípio, trata-se de uma perseguição “apenas” profissional e direcionada a quem “comemorou” o assassinato de Charlie Kirk nos EUA. Mas afinal é como tudo costuma começar para depois descarrilar em coisa muito pior.
Pois os mesmos Gustavo Gayer e Nikolas Ferreira compartilharam na semana passada, durante o julgamento de Bolsonaro no STF, um vídeo sobre a violência descarrilada que acontecia no Nepal, acrescentando as legendas “MEU DEUS!! É impressionante as semelhanças com o Brasil! Será que vai acontecer a mesma coisa aqui?” (Gayer) e “o povo do Nepal cansou” (Nikolas). Na última quinta-feira, 11, dia da condenação de Bolsonaro e dia seguinte ao assassinato de Kirk em Utah, Nikolas publicou no Twitter/X uma imagem dele próprio sob a frase “seja a extrema-direita que eles tanto têm medo” e acompanhado de um personagem usado por neonazistas estadunidenses como apito de cachorro.
Nesta segunda-feira, 15, o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, deputado Reimont (PT-RJ), pediu à Procuradoria-Geral da República investigação e bloqueio emergencial das redes sociais de Nikolas Ferreira e Gustavo Gayer. Reimont afirmou ao Brasil de Fato que “estamos diante de um risco concreto e iminente. É preciso agir com urgência para proteger a democracia, a dignidade humana e a segurança da população”.
“Urgência” parece mesmo a palavra-chave.
O filme Concorrência Desleal, de Ettore Scola, mostra a escalada da violência na Itália fascista no momento em que Mussolini consolida sua aliança com o Terceiro Reich. Numa cena do filme, três membros, digamos, “extremistas” de uma família de Roma discutem a situação, preocupados. De repente, chega da rua o cunhado do dono da casa, que sempre viveu ali um tanto encostado, à custa do marido da irmã, lamentando-se pelos cantos, dia após dia cultivando um forte rancor pelos outros membros da família, a quem atribui seu fracasso como ser humano, típico dos que fracassam em todos os sentidos tão somente pela própria pobreza de espírito.
Pois o sujeito, quando entra, aparece fardado, está da noite para o dia usando um uniforme do regime fascista. Ele entra de queixo erguido, sobranceiro, cantarolando algo sobre como é bom lutar pela Pátria. Faz, orgulhoso, a “saudação romana” no meio da sala de estar. De repente, começa a dar ordens às mulheres da casa, que é a maneira de o patife exibir sua certeza de que agora, soldado do fascismo, finalmente irá “ser alguém”. Com as mãos para trás, começa a discursar à moda marcial, ameaçador: “não há lugar para duas caras. É preciso varrer nos cantinhos, e nós vamos varrer!”.
Um outro membro da família, estupefato com a cena, não se contém: “está aí um sujeito coerente! Sem álibis! Orgulhoso! Indômito!”. O fascista agradece: “finalmente, sábias palavras nessa casa!”. Estúpido, não percebeu que fora alvo de ironia. Dias depois, antes que desse tempo de varrer nos cantinhos da própria casa, em nome da “causa”, o estúpido acaba atirando no próprio pé enquanto limpava a arma que puseram em suas mãos. Que dirão, que álibis terão os assopradores de apito — os de agora — quando atiçados menos atrapalhados, quando açulados mais habilidosos começarem a atender ao seu chamado?