Sobre a Bola de Ouro para Rodri, em vez de Vini
"Foi por pouco", disse o editor da France Football. O que "foi por pouco"? O que realmente prevaleceu para que tenham recusado a Bola de Ouro ao preto insubmisso?
Dizem que o futebol explica o mundo. Mais correto, porém - e até óbvio -, é afirmar que o mundo explica o futebol.
Vinícius Júnior é hoje o símbolo maior da luta antirracista no chamado “mundo da bola”, por causa da maneira altiva, contundente, militante com a qual tem reagido aos recorrentes episódios de racismo contra ele na Espanha. A luta contra o racismo não é critério para a Bola de Ouro, mas o racismo pode explicar o fato de a Bola de Ouro de 2024 não ter ido para o ponta-esquerda do Real Madrid, craque-unanimidade da temporada.
Não que outros jogadores pretos já não tenham ganhado a Bola de Ouro. Mas quantos pretos ganharam o prêmio nesta conjuntura de recrudescimento do fascismo e do seu subproduto em tela: o racismo inflado, envaidecido, ostensivo, pintado para a guerra? Quantos pretos insubmissos ganharam a Bola de Ouro nesse ambiente mundial?
O último preto ganhador do prêmio foi Ronaldinho Gaúcho, quase 20 anos atrás, em 2005. Para piorar, a Bola de Ouro de 2024 foi dada a Rodri, volante espanhol classudo e bom de passe do Manchester City.
Nenhum problema com o bom Rodri em si próprio. Rodri, porém, é cria das categorias de base do Atlético de Madrid. Foi atuando pelo Atleti que ele chamou a atenção de Pep Guardiola, que o levou para o City no mesmo ano em que Vinícius Júnior estreou pelo Real. E aqui está o problema complementar: os campeões de atos racistas contra Vinícius Júnior na Espanha têm sido justamente torcedores do Atlético.
Em janeiro de 2023, torcedores do Atlético penduraram em uma ponte de Madrid um boneco vestido com a camisa de Vinícius Júnior, simulando o enforcamento do jogador; em março deste ano, num clássico Real e Atlético pela Champions, puxaram nas arquibancadas um canto chamando Vinícius de chimpanzé; agora mesmo, em setembro, organizaram o uso de máscaras num outro Real e Atlético, para dificultar o reconhecimento de quem insultasse Vinícius com gritos racistas.
Na última segunda-feira, 28, enquanto o Real Madrid em peso, diretoria inclusive, boicotava a cerimônia de entrega da Bola de Ouro, a nação colchonera, enforcadores de pretos inclusive, comemorava o prêmio do seu “cria”.

O prêmio Bola de Ouro é organizado pela revista France Football. O editor da revista, Vincent Garcia, fez malabarismos matemáticos para explicar a Bola de Ouro 2024 indo para Rodri, não para Vini, e disse que “foi por pouco”. O que “foi por pouco”? Nesta conjuntura, neste ambiente na Europa e no mundo, o que realmente prevaleceu para que tenham recusado a Bola de Ouro ao preto indômito?
Nesta terça-feira, 29, o jornal L’Équipe, do mesmo grupo econômico que controla a France Football, botou no ar um podcast com a pergunta “por que a Bola de Ouro escapa aos jogadores africanos?”, lembrando que a última vez que o prêmio foi dado a um africano foi há quase 30 anos, em 1995, ao liberiano George Weah. Na chamada para o podcast, o L’Équipe elenca as possíveis respostas à pergunta: “métodos de votação, domínio de Messi e Ronaldo, conflito geracional”.
Tem até “conflito geracional”. Racismo? Imagina.
Além de editor da France Football, Vincent Garcia é redator-chefe do L’Équipe.
Um francês como Garcia, Eric Cantona, costuma aparecer em listas de craques que nunca ganharam a Bola de Ouro. Eram outros tempos, mas em meados da década de 1990, no auge da carreira, jogando pelo outro grande clube de Manchester, o United - e com a camisa 7, como a de Vinícius no Real -, Cantona deu um kung-fu em um neonazista que lhe gritava insultos racistas da arquibancada do estádio do Crystal Palace. A voadora de Cantona foi o estopim para o movimento “kick racism out of football".
No meio do ano passado, foi a Vincent Garcia que o também francês Dimitri Payet deu uma das suas últimas entrevistas - uma longa entrevista - como jogador do Olympique de Marselha, logo antes de Payet assinar com o Vasco da Gama. Quando chegou ao Rio de Janeiro, Payet disse que um dos motivos que o animaram para vestir a camisa do Vasco foi o histórico de luta antirracista que marca a história do clube.
Na segunda, enquanto na França davam a Bola de Ouro para Rodri, não para Vinícius Júnior, e Vincent Garcia tentava explicar o que não tem explicação, Payet fazia sua melhor partida pelo Vasco, marcando dois gols na vitória sobre o Bahia em São Januário. Na partida, o Vasco estreou seu terceiro uniforme na temporada, uma camisa em homenagem aos 100 anos de uma dos maiores orgulhos do clube: a Resposta História de 1924.
Naquele ano, o Vasco foi instado pelos clubes da Zona Sul do Rio a mandar embora seus jogadores pretos e “inimigos da literatura” - analfabetos, sob pena de não poder participar de uma nova liga. O Vasco, em carta, respondeu assim ao presidente da recém-fundada Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA) e presidente também do Fluminense Football Club, Arnaldo Guinle:
“Estamos certos que V. Exa. será o primeiro a reconhecer que seria um ato pouco digno da nossa parte sacrificar, ao desejo de fazer parte da AMEA, alguns dos que lutaram para que tivéssemos, entre outras vitórias, a do Campeonato de Futebol da Cidade do Rio de Janeiro de 1923”.
“São esses 12 jogadores jovens, quase todos brasileiros, no começo de suas carreiras, e o ato público que os pode macular nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que eles com tanta galhardia cobriram de glorias”.
“Nestes termos, sentimos ter que comunicar a V. Exa. que desistimos de fazer parte da AMEA”.
Como nem tudo são glórias, a nova camisa em homenagem à Resposta Histórica já chega maculada com o logotipo da Betfair, patrocinadora do Vasco e gigante das apostas esportivas online que são desgraça para os brasileiros em geral e para os brasileiros pretos em particular. Segundo o relatório “Futuro das Apostas Esportivas Online: onde estamos e para onde vamos”, os pretos são o maiores apostadores das bets no Brasil.
Quanto a Arnaldo Guinle, há na entrada das Laranjeiras um busto do racista morto em 1963.
Aliás, talvez Vinícius Júnior um dia ganhe a Bola de Ouro se “o sublime crioulo” resolver “baixar a bolinha” e fizer como o jogador do Fluminense mencionado por Mário Filho em 1964, ano seguinte à morte de Guinle, no prefácio à segunda edição de “O negro no futebol brasileiro”, no qual o jornalista que deu nome ao Maracanã explica a inclusão no livro de um capítulo sobre “o embranquecimento do preto nos clubes que defendem”.
“Um preto para o Fluminense não é um preto para o Fluminense - escreveu Mario Filho -. É tratado como branco. Pode esquecer-se da cor e dizer como Robson: ‘eu já fui preto e sei o que é isso’”.
Boa noite
Bola de ouro ao melhor artigo futebolista do ano.