Sobre a 'lição' que o comandante do Exército teria dado ao presidente Lula
Saiu no Estadão uma análise segundo a qual o comandante do Exército, general Tomás Paiva, teria acabado de dar ao presidente Lula “uma lição sobre o papel do Brasil no mundo".

No início da semana, saiu no Estadão uma análise segundo a qual o comandante do Exército, general Tomás Paiva, teria acabado de dar ao presidente Lula “uma lição sobre o papel do Brasil no mundo”. É que no último 28 de abril, aniversário da conquista de Fornovo, Tomás Paiva esteve na Itália prestando continência aos mortos da Força Expedicionária Brasileira, e Lula, conforme a análise, deveria ter feito o mesmo.
“Em vez disso - diz o artigo -, resolveu comparecer ao Kremlin para apertar a mão do ditador Vladimir Putin na semana que o IBGE divulgou seu novo mapa-múndi, que coloca o Brasil no centro do globo. Faltou pouco para rebatizar o Golfo da Guiné como Golfo do PT. É no mínimo estranho perceber aproximações ou semelhanças com o governo de Donald Trump? Lula e o americano são diferentes. Profundamente. Mas se igualam em uma coisa: a capacidade para produzir bobagens”.
“Enquanto isso, o general Tomás fazia aquilo que o País espera há muito da República: o reconhecimento e a gratidão em relação aos brasileiros – comunistas, liberais e conservadores – que lutaram contra o nazifascismo”.

O autor do artigo publicado no Estadão é um jornalista sério, respeitado, estudioso da questão militar no Brasil, autor de livros importantes sobre os crimes da ditadura. Mas assim o Partido Militar agradece.
Aliás, em janeiro, o general Tomás Paiva gravou um vídeo parabenizando o Estadão pelos 150 anos do jornal. No vídeo, o general manda um “forte abraço da Força Terrestre” ao Estadão pelo “século e meio de dedicação à Democracia”; um abraço para o jornal que, disse ainda Tomás Paiva, “sempre foi uma referência nos momentos mais importante do nosso país”.
Tipo a manchete do Estadão do dia 3 de abril de 1964: “Democratas dominam toda a nação”.
Mas então ficamos assim? Lula produz bobagens, faz coisas burras, enquanto o general Tomás Paiva, comandante do Exército, este sim, faz aquilo que se espera da República?
Vejamos.
“Foi uma coisa burra”. Foi o que disse um general do Exército Brasileiro à imprensa, em 2018, sobre um trecho de uma resolução aprovada pelo Diretório Nacional do PT em 2016, logo após a abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff. Era o trecho em que o partido dizia, diante do golpe contra Dilma, que os governos petistas deveriam ter atuado para alterar o sistema de promoção das Forças Armadas e o currículo das escolas militares.
O nome do general que disse isso? Tomás Paiva. Ele era o chefe de gabinete do comandante do Exército, que na época era o general Eduardo Villas Bôas, que se mancomunou com Michel Temer para derrubar Dilma. A entrevista, feita pelo repórter Fabio Victor, era para ser apenas com Villas Bôas, mas o grande fiador do golpe de 2016 chamou alguns dos seus homens de confiança para participar.
O general Tomás Paiva era um deles. A entrevista feita por Fabio Victor com Villas Bôas e seu círculo de confiança foi publicada em março de 2018 na revista Piauí. A frase completa do general Tomás Paiva sobre o trecho da resolução do Diretório Nacional do PT foi esta, esta peça exemplar de como, no governo Temer, altos oficiais do Exército se sentiam à vontade para lacrar publicamente sobre política, para chutar cachorro que consideravam morto: “isso para mim foi o maior erro estratégico do PT, foi uma coisa burra”.
Logo depois, em abril de 2018, o general Villas Bôas ameaçou publicamente o STF, via Twitter, com supostas “missões institucionais” do Exército caso o Supremo desse o Habeas Corpus que colocaria Lula na disputa presidencial com Bolsonaro nas eleições daquele ano. Havia um termo-chave naquela ameaça, naquela tuitada golpista para garantir a morte do cachorro: “repúdio à impunidade”. O termo foi uma sugestão de Tomás Paiva, para turbinar a ameaça de Villas Bôas.
Conta o mesmo Fabio Victor no livro “Poder Camuflado - os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro”, lançado em 2022:
“O texto que resultaria num tuíte de Villas Bôas coagindo o Supremo começou a ser esboçado dias antes pelo comandante, como auxílio sobretudo do general da reserva Alberto Cardoso, seu ‘ícone de liderança’. A versão original deixava claro que o Exército seria contrário a uma eventual concessão de habeas corpus a Lula - e não subentendido, como por fim foi publicado. Em conversas entre si e com Villas Bôas, o generais Cardoso e Joaquim Silva e Luna (então ministro da Defesa) ajudaram a moderar o teor da mensagem. Sua edição final, naquele terça-feira fatídica, mobilizou o gabinete pessoal do comandante do Exército, formado pelos generais Tomás (chefe de gabinete), Rêgo Barros (Comunicação) e Ubiratan Poty (Inteligência) - todos da turma de 1981 da Aman. Numa reunião iniciada às seis da tarde, da qual participou também o chefe do Estado-Maior, Fernando Azevedo e Silva, foi batido o martelo sobre a publicação e o teor da mensagem. Tomás deixou o Forte Apache e se preparava para um jantar na casa do almirante Flávio Rocha, então chefe de gabinete do comandante da Marinha, Leal Ferreira. Às 19h50, recebeu uma ligação de Villas Bôas, que leu para ele a versão final depois de mais alguns pequenos ajustes. Tomás elogiou o resultado e em seguida ligou para Rêgo Barros [então chefe do Centro de Comunicação Social do Exército e o auxiliar direto que tinha a senha do perfil oficial de Villas Bôas no Twitter], autorizando a publicação”.
E foi assim que o general Tomás Paiva, descrito do livro de Fabio Victor como “oficial eleito por Villas Bôas, sua maior aposta para o futuro”, foi assim que o general Paiva participou da entrada do Exército, de coturno, no lawfare contra Lula, para tirar Lula da eleição de 2018.
Para tirar Lula da disputa contra aquele que tinha se anunciado candidato à Presidência da República quatro anos antes, em 2014, em discurso político ilegal feito dentro da Aman, durante uma formatura de cadetes. Naquele dia, 29 de novembro de 2014, Jair Bolsonaro, sem ser impedido, prometeu assim aos cadetes: “vai morrer muita gente pelo caminho, mas em 2018 vamos virar este país para a direita”. Foi saudado em coro como “mito!” e “líder!”. Sem ser incomodado para anunciar candidatura a presidente, prever mortes e prometer “virar o país à direita”, tudo dentro de uma Organização Militar, Bolsonaro tampouco foi punido depois.
O comandante da Aman na ocasião era o próprio Tomás Paiva. O chefe de gabinete do comandante do Exército era o general Mauro Cesar Lourena Cid, pai do tenente-coronel Mauro Cid. O comandante do Exército era outro “general legalista”, Enzo Peri, que na mesma época foi alvo de um pedido de investigação por parte do Grupo de Trabalho Justiça de Transição do Ministério Público por violar a lei, pelos crimes de falsidade ideológica (até cinco anos de prisão) e recusar ou omitir dados cadastrais, registros, documentos e informações requisitadas pelo juiz, Ministério Público ou delegado de polícia em curso de investigação (até dois anos de xadrez).
A investigação em questão, aliás, era sobre o assassinato e ocultação do cadáver de Rubens Paiva.
Hoje comandante do Exército, o antigo chefe de gabinete de Villas Bôas já está com seu segundo chefe de gabinete no Forte Apache, os dois reciclados, reaproveitados, recuperados dos mais altos gabinetes da trama golpista de 2022.
O primeiro foi o general Francisco Humberto Montenegro Junior, que foi chefe de gabinete de todos os últimos comandantes do Exército: Edson Leal Pujol, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, Marco Antônio Freire Gomes (todos no governo Bolsonaro), Júlio Cesar Arruda (já no governo Lula) e, até o fim de 2023, de Tomás Paiva.
Como chefe de gabinete do general Freire Gomes no Forte Apache, Montenegro, segundo a imprensa, teve influência na nota “Às Instituições e ao Povo Brasileiro”, com a qual em novembro de 2022 os então comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica declararam apoio público ao “povo brasileiro” acampado na frente dos quartéis e ameaçaram publicamente com o “cumprimento das nobres missões de Soldados Brasileiros” as instituições que tentassem mandar os acampados de volta para casa.
No fim de 2023, Montenegro foi promovido a quatro estrelas e rendido na chefia de gabinete do general Tomás Paiva pelo general de divisão Marcio de Souza Nunes Ribeiro. Ribeiro vinha de ser chefe de gabinete do general Paulo Sergio Nogueira de Oliveira no Ministério da Defesa, de julho a dezembro de 2022. Neste período, o general Paulo Sergio atuou ostensivamente como ministro dos Ataques Militares às Urnas Eletrônicas, bombardeando o TSE com suspeitas infundadas de fraude eleitoral e chegando a levar um coronel do Exército a uma audiência pública no Senado para dizer que podia haver um malware escondido nos chips das urnas para ser acionado no dia da eleição.
Os ataques militares às urnas eletrônicas foram a base a partir da qual a trama golpista se desenrolou, culminando no 8/1.
Em agosto de 2022, foi ao general Marcio de Souza Nunes Ribeiro que o líder de um movimento golpista-ruralista endereçou um pedido para enfiar 27 tratores do “agro” no desfile do bicentenário da Independência. O Ministério da Defesa autorizou a presença dos tratores, turbinando a degeneração da solenidade cívica oficial do 7 de Setembro em ato de campanha de Jair Bolsonaro.
O general Paulo Sergio Nogueira de Oliveira foi exonerado da chefia do Ministério da Defesa ainda no dia 31 de dezembro de 2022, pelo presidente por um dia Hamilton Mourão, o general Mourão. O general Marcio de Souza Nunes Ribeiro foi exonerado da chefia de gabinete do ministro da Defesa no dia seguinte, 1º de janeiro de 2023, voltando a cargo importante - sim senhora. Sim, senhor - ainda naquele ano, pelas mãos de Tomás Paiva.
Naquele ano, em julho, com sete meses de governo Lula, o general Paulo Sergio fez sua última “viagem a serviço”, segundo o Portal da Transparência. Foi de Brasília para Belém do Pará. O motivo da viagem, conforme o Portal da Transparência, foi “acompanhar o comandante do Exército em viagem oficial ao Comando Militar do Norte nos dias 10 e 11 de julho de 2023”.
Naquele 11 de julho de 2023, enquanto o ex-ministro dos Ataques Militares às Urnas Eletrônicas acompanhava o general Tomás Paiva em viagem oficial, a convite do Forte Apache, o tenente-coronel Mauro Cid irrompia no plenário da CPMI do 8/1 usando sua farda de tenente-coronel. A orientação sobre com que roupa o ex-ajudante de golpe se apresentou à CPMI partiu do Comando do Exército.
No mês seguinte, agosto de 2023, Tomás Paiva nomeou como oficial do seu gabinete um outro tenente-coronel, André Luiz Cruz Correia, que tinha sido exonerado do GSI após a Polícia Federal descobrir, via celular de Cid, que Correia integrou um grupo de WhatsApp onde militares discutiam golpe de Estado em 2022.
André Luiz Cruz Correia serviu no gabinete do comandante do Exército até maio do ano passado, quando o general Tomás Paiva o nomeou para comandar os mais de 800 militares do 4º Batalhão de Polícia do Exército, no Recife.
Em outubro de 2023, a CMPI pediu os indiciamentos do tenente-coronel Mauro Cid e e do general Paulo Sergio por associação criminosa, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e Golpe de Estado. Em novembro do ano passado, o tenente-coronel e o general foram indiciados pelos mesmos crimes pela Polícia Federal, no âmbito do inquérito do golpe. Hoje, Cid e Paulo Sergio são réus no STF, por tentativa de golpe.
Cruzando dados das operações Tempus Veritatis e Contragolpe, ambas da Polícia Federal, constata-se que o general Tomás Paiva esteve na casa do general Villas Bôas no dia seguinte à noite em que kids pretos saíram a campo para sequestrar Alexandre de Moraes, a noite de 15 de dezembro de 2022, data marcada também para o assassinato de Lula. Horas depois de a operação “Punhal Verde Amarelo” ser abortada por motivo até hoje não totalmente esclarecido, o então comandante militar do Sudeste tocou a campainha de Villas Bôas e “deu uma mijada no VB”, nas palavras do general Braga Netto, em mensagem a outro golpista interceptada pela PF.
Em qual categoria de agente público fardado e com comando se enquadra o atual comandante do Exército Brasileiro? Aquele que não sabia de plano de golpe, de plano para assassinar quem viria a nomeá-lo para o posto, que não sabia de nada, mesmo integrando o Alto Comando do Exército? Aquele que sabia da conspiração golpista e nada fez? Ou aquele que sabia, fez alguma coisa, além de mijar no VB, mas nunca trouxe a conspiração e os conspiradores à luz do dia, com todas as consequências do silêncio dele, Paiva, e de todo o generalato, inclusive o 8/1?
Com todas as consequências desta nova “lei do silêncio” entre o generalato, que se soma àquela outra, também vigente, ainda em vigor no Exército Brasileiro: a “lei do silêncio” sobre os brasileiros que foram sequestrados, mortos e tiveram seus cadáveres ocultados pela ditadura, até hoje ocultados, agora com os cumprimentos de generais “legalistas”.
De modo que o general Tomás Paiva parece não reunir condições, ter histórico ou exibir estatura - não ele - para dar lições a Lula, muito menos sobre transigir com ditaduras, sobre “aquilo que o País espera da República”, sobre o Brasil perante o mundo e sobre honrar brasileiros mortos na luta contra assassinos.
Tutameia
Passou o carro...
O estadúnculo certamente preferia comemorar a vitória do exército nazista na data, e não lembrar os milhões de civis e militares soviéticos que morreram para poder derrotar Hitler.