Sobre a programação da TV pública brasileira
Educação financeira não é um mal. Quem pode ser contra a bússola da responsabilidade e da previdência? Mas e quando entra a ideia de “sucesso do indivíduo” levada às últimas consequências?
“Defina o que você quer fazer, senão o sacrifício não vai valer a pena. Senão, vai juntar pra quê?”, disse na última quinta-feira, 17, na TV Brasil, uma “comunicadora e orientadora financeira” que tem nas pessoas com baixa renda o seu público-alvo para dicas de prosperidade.
Em seguida, a convidada do programa Sem Censura deu o seguinte exemplo do que pode acontecer com “quem não tem um objetivo”:
“Ah, estourou um cano na casa da minha mãe”.
“Ai, filha, e aí, você tem dinheiro?”
“Tenho sim, estou guardando aqui”.
“Pronto. Resolveu o problema do cano”.
E concluiu assim:
“Mas se estourar na casa dela, ela não vai ter de onde tirar pra cobrir e vai acabar se endividando novamente”.
Educação financeira não é um mal em si. Pelo contrário. Quem pode ser contra a bússola da responsabilidade e da previdência? Mas a educação financeira, quando misturada com a ideia de “sucesso do indivíduo” levada ao seu paroxismo, resulta, por exemplo, em orientação dada na TV pública para que se diga à mãe em apuros algo como: “mamãe, não vamos misturar família com aplicações”.
A não ser que o cano tenha estourado em algum Motel Bates, quem - porque tem um objetivo, porque tem uma meta, porque tem um foco - deixaria inundar a casa da própria mãe?
A convidada do Sem Censura chegou à TV pública brasileira com a credencial de ter vencido recentemente o reality show de empreendedorismo “Shark Tank Brasil”. O programa tem esse nome porque os participantes disputam num palco o dinheiro dos “tubarões do investimento” que compõem o júri.
A convidada do Sem Censura ganhou no “Shark Tank” um aporte R$ 200 mil da Cielo para produzir uma websérie que “aborda conceitos financeiros a partir da perspectiva afro-brasileira”.
Não se sabe se entrará na websérie a denúncia feita meses atrás por funcionários do grande tubarão Bradesco, controlador da Cielo, de que uma colega chamada de "preta preguiçosa" por um cliente numa agência em Salvador recebeu da chefia, em vez de apoio, pressão para não relacionar o nome do banco ao ocorrido.
Mundo Coach: da Era do Gelo ao Investimentoceno
Ainda no Sem Censura da última quinta, um outro convidado do programa, ator e diretor, animou-se com o rumo coaching da prosa e contou que:
“Eu estava vendo outro dia um esquilinho. Ele vai pegando uma série de nozes e vai escondendo em vários lugares da floresta. Ele não vive em uma sociedade capitalista como nós, mas ele também guarda”.
Guarda para o inverno ou guarda como Scrat? Scrat é o nome do esquilinho dos filmes Era do Gelo que só pensa, só faz, só vive para tentar esconder sua bolota de noz, quiçá da própria mãe.
Não propriamente responsável, não exatamente previdente, mas psicótico, tudo o que Scrat consegue no fim das contas é o que a sociedade capitalista está conseguindo também: desencadear uma catástrofe global.