Sobre a República Federativa Betano do Brasil
Nas políticas de "jogo responsável" das bets, a palavra "vício" não existe e a culpa dos danos coletivos causados pela fezinha muito fácil cai no colo do indivíduo - dos “jogadores problemáticos”.
Faz tempo que Brasileirão e Copa do Brasil não são mais os nomes das duas principais competições do futebol nacional. Os nomes agora variam de acordo com as bets que apostam mais alto, com trocadilho, em “naming rights”. Atualmente, essas bets são a mesma pessoa jurídica e os nomes das competições são Brasileirão Betano e Copa Betano do Brasil.
A casa/site/app de apostas esportivas Betano, que tem sede na Grécia, é propriedade da Kaizen Gaming, que tem sede num paraíso fiscal – Malta. A Betano também foi patrocinadora oficial das mais recentes edições da Eurocopa e da Copa América, realizadas meses atrás. O campeonato argentino de futebol, também ele, agora atende por Torneo Betano.
Para o próximo jogo do Brasileirão Betano com o único clube brasileiro patrocinado pela Betano, o Atlético-MG, contra o Palmeiras, é possível apostar, na Betano, se o primeiro gol sai antes ou depois dos 28 minutos de jogo; se o primeiro cartão sai antes dos 25; se o Atlético bate mais ou menos de “10.5” laterais; se estará vencendo, perdendo ou empatando entre os minutos 75 e 90 da partida; se o total de gols na partida será um número ímpar ou um número par.
Etc, etc, etc.
Há nada menos que 31 variações diferentes de apostas só para escanteios; 31 chamamentos suculentos ao vício em apostas esportivas online só em se tratando de escanteios, desde o total de escanteios que serão marcados na partida até quantos o Atlético irá cobrar antes de o cronômetro bater em 10 minutos de jogo.
Em sua “política de jogo responsável”, porém, a Betano não usa a palavra “vício”, nem “dependência”, não menciona a expressão “vício em apostas”, substituindo-a por outra, “jogo problemático”, candidata ao Oscar, ou melhor, à Bola de Ouro de eufemismo mais adocicado da temporada.
Contra o “jogo problemático”, a Betano afirma que toma providências para que seus clientes estejam “totalmente cientes dos danos sociais e financeiros associados a jogos de azar”.
Beba na Betano com moderação e bola pra frente e, quando essa bola rolar, sabe como é: o que vai acontecer primeiro no jogo? Falta, lateral, tiro de meta, gol ou escanteio? E quantos escanteios o Atlético vai bater? E quantos tiros de meta? E quantas faltas o Palmeiras vai fazer? Quantos cartões vai levar? Quantos amarelos? Quantos vermelhos? Quantas vezes o técnico visitante vai cuspir no primeiro tempo? Cuspe ou catarro? Catarro branco, verde ou amarelo? Quantos copinhos d’água o técnico do time da casa vai chutar no segundo tempo? Minalba ou Crystal? Com gás ou sem gás?
A Betano não é a única. Em todo o mercado de bets, em seus sites, nas suas páginas de “jogo responsável”, só se fala em “jogadores problemáticos”, passando pra frente, para o indivíduo, a responsabilidade pelos danos sociais, coletivos, da facilidade de acesso às apostas esportivas. Facilidade de acesso regada a facilidade instantânea de pagamento das apostas e a muita publicidade, muitas celebridades, muitos patrocínios, uma pá de “naming rights”.
E com o bet-balanço aterrador de que os brasileiros já gastam (perdem) em sites de apostas o equivalente a 1% do PIB da República Federativa Betano do Brasil.
O divã da Sportsbet
Além de disputar o Brasileirão Betano, o Atlético-MG segue vivo na Copa Betano do Brasil e na Copa Libertadores da América, que, por falar em “naming rights”, durante alguns anos recentes chegou a se chamar Copa Conquistadores da América, quero dizer, Copa Santander Libertadores.
Hoje, a Libertadores tem entre seus patrocinadores oficiais a Sportingbet, bet da holding transnacional de apostas esportivas e jogos de azar Entain, que também tem sede em um paraíso fiscal, a Ilha de Man, dependência da Coroa Britânica.
Não confundir a Sportingbet com a Sportsbet. Essa última é propriedade da Flutter Entertainment, holding de apostas esportivas e jogos de azar com sede num terceiro paraíso fiscal - a Irlanda.
Em seu site, na sua página de “jogo responsável”, a Sportsbet afirma que “uma minoria pode desenvolver problemas com suas apostas” e, neste caso, recomenda: “jamais aposte dinheiro que você não possa perder”; “não tente recuperar suas perdas”; “não permita que suas apostas e/ou jogos ocupem um tempo que normalmente estaria designado para realizar outras atividades”.
No entanto, até não muito tempo atrás, estava no ar na TV brasileira um comercial da Sportsbet que chegava a zombar do vício em apostas esportivas. No comercial, o ex-jogador Denílson, garoto-propaganda da bet, aparecia dizendo assim, sentado num consultório psiquiátrico: “então, doutor, em todo lugar que eu vou parece que está me perseguindo. Você pode até achar que eu estou exagerando, mas pra onde eu olho, tá lá. Eu não sei o que fazer”.
No que o psiquiatra respondia assim, tal e qual a mente de um dependente de apostas tentando arranjar subterfúgios para fazer uma fezinha: “quem sabe isso não é um bom sinal?”.
Desgraças
Estamos falando de uma indústria do vício que oferece a primeira dose, talvez a segunda, talvez R$ 20 em aposta grátis toda segunda-feira, como faz outra bet da Flutter Entertainment que opera no Brasil, a Betfair.
Na manhã deste sábado, 28, a página de “jogo responsável” da Betfair sequer estava funcionando, retornando um erro de código (“SSL connection error. Code: mk_media_css”, para ficar registrado), mas a página inicial do site da Betfair na manhã deste sábado era um desfile de convites à compulsão:
“Está chegando agora? Receba até R$ 600 em aposta grátis para você começar sem zebras”;
“R$ 20 em aposta grátis, toda segunda”;
“Ganhe 100 rodadas grátis [no Cassino Betfair] ao apostar R$ 20”.
Neste domingo, 29, enfrentam-se nas Minas Gerais os dois clubes do Brasileirão Betano que estampam o logotipo da Betfair em seus mantos profanados: Cruzeiro e Vasco da Gama. Este domingo, portanto, é dia de clássico Betfair e a Betfair está pagando bem para quem apostar, e acertar, que seus dois times marcarão dois gols cada um logo no primeiro tempo, dentre centenas de possibilidades de apostas para uma partida só.
Em tempo: dos 20 clubes da primeira divisão do futebol brasileiro, apenas um, o Cuiabá, não estampa empresas de apostas esportivas em seu material esportivo. No Brasileirão Betano, o Cuiabá vai a campo sem bets, mas exibindo em seu uniforme as marcas de três empresas ligadas a desgraça pior que as bets para o Brasil: o agronegócio.
Faça sua aposta. O que acaba primeiro? A Amazônia? O Cerrado? O Pantanal?