Sobre calças cinzas e ditadores
O crime do jovem Francisco na Escola Municipal Presidente Arthur da Costa e Silva.
Os nomes definem as coisas. Em alguns casos, eles aprisionam o que deveria ser livre. E, quando falamos de liberdade, nomes deveriam ser portas abertas, não paredes sufocantes. Tenho três filhos, dois em idade escolar, ambos estudando na rede pública do município do Rio de Janeiro. A despeito de este relato ser localizado nesta província, o que me interessa é algo maior: a relação entre o nome e a coisa em si.
Sei que muitos filósofos se dedicaram a esse tema. Longe de mim querer tomar tal lugar. Mas sei também que nenhum dos que me vêm à mente agora teve um filho numa escola pública do Rio de Janeiro. Meu filho mais velho, Francisco, teve um período muito feliz na Escola Municipal Anne Frank, nome que carrega marcas de luta, resistência e memória. Durante seus anos lá, vi brotar nele traços contestadores e profundamente reflexivos. Pequeno interstício: Francisco foi diagnosticado com autismo. Não estou aqui para discutir a amplitude desse diagnóstico ou compará-lo aos índices do passado, quando a violência institucional disfarçava a diversidade sob a capa da normatização. Mas pensei que havíamos superado isso.
Voltando aos nomes e às coisas - perdoe-me, Foucault, pelo trocadilho -, meu filho, ao terminar seu ciclo na Anne Frank, foi encaminhado para uma nova escola. O nome dela? Arthur da Costa e Silva. O ditador Arthur da Costa e Silva. Nomes definem as coisas.
Hoje, após míseros três dias de aula, Francisco voltou para casa com sua primeira advertência. O bilhete da escola era displicente, mas a palavra “advertência” pesou. Por um momento, pensei estar lidando com um delinquente juvenil contumaz. Não era o caso. A advertência se deu por ele estar usando uma calça de moletom cinza, em vez do jeans azul exigido pela norma da escola. Uma calça de moletom, a única que ele aceita usar, independentemente da quantidade de calças novas que possamos comprar. Esse simples detalhe não agradou à direção.
Comecei a me perguntar: qual é a relação entre a cor da calça e o projeto político-pedagógico da escola? Antes mesmo do primeiro dia de aula, recebi uma ligação. Informaram-me que, por determinação da prefeitura, os alunos “incluídos” teriam apenas duas horas de aula por dia na primeira semana, enquanto os demais teriam sete. Questionei: “Se meu filho está incluído, por que está sendo excluído?” Me foi perguntado sobre as especificidades do meu filho, ao que esclareci: ele apresenta hipersensibilidade corporal, não tolera toques em sua pele, usa apenas calças confortáveis, máscaras e casacos. Fora isso, tem um bom relacionamento com os amigos, que o respeitam mesmo sem entender seus diagnósticos. Disse ainda que ele poderia perfeitamente frequentar o período integral, pois suas dificuldades não comprometiam a convivência nem o aprendizado. A resposta da escola não foi convincente. O laudo que apresentamos, longe de beneficiar meu filho, parece beneficiar a escola, pois permite a redução da quantidade de matrículas por sala. Nós não pedimos mediador nem sala de recursos. Mesmo assim, fomos encaixados na categoria que mais facilita a logística institucional.
A direção vaticinou que a escola é referência no acolhimento de crianças autistas. Mas, ao que tudo indica, “referência” é uma palavra autorreferencial. Não vejo esse reconhecimento vindo de fora, de famílias como a nossa. Ao conversar com Francisco sobre a advertência, ele me contou que, junto com outros alunos, foi emparedado em um canto da escola. O crime? Não usar o uniforme correto. O “paredão”, como ele chamou, parecia ecoar o nome do patrono.
Ainda sobre o nome e a coisa em si: no ano passado, o projeto Ditamapa, desenvolvido pelos pesquisadores Giselle Beiguelman, da Universidade de São Paulo (USP), e Andrey Koens, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), identificou 538 locais públicos no Brasil que ainda levam o nome de ditadores da ditadura, entre ruas, pontes, viadutos e… escolas. Nada menos que 184 deles têm o nome de Arthur da Costa e Silva, o general do AI-5.
A cidade em que nasci e onde vivo tem uma escola Castelo Branco e um bairro, UM BAIRRO, batizado Costa e Silva...
Em que cidade fica a Escola Anne Frank que seu filho frequenta? A atitude da escola foi absolutamente estúpida. Mas, com certeza, o Francisco vai consegui superar.