Sobre escolhas difíceis e óbvias
A ofensa de Trump à soberania nacional pôs em brios a imprensa e estimulou os protestos contra os "inimigos do povo". Lula reagiu à altura mas é preciso atenção às negociações para as eleições de 2026

A gravíssima e ao mesmo tempo estapafúrdia e destrambelhada agressão à soberania nacional expressa na carta de Trump, que o governo brasileiro fez o favor de devolver com a resposta ao mesmo tempo serena e incisiva que o episódio pedia, já foi objeto de muitas análises bem fundamentadas, que exploraram diferentes aspectos dessa ameaça, especularam sobre possíveis consequências e convergiram num ponto: a conclusão de que o efeito foi oposto ao pretendido, fortaleceu Lula e deu mais fôlego às manifestações realizadas em várias capitais na última quinta-feira, 10 de julho, ampliando o protesto originalmente voltado contra o Congresso “inimigo do povo” para incluir o repúdio a essa inusitada ofensa, com direito a queima da bandeira norte-americana, que fez lembrar os velhos tempos da guerra fria e das reações contra o “imperialismo ianque”.
A aprovação de uma moção de louvor a Trump pela Comissão de Relações Exteriores da Câmara, horas antes da carta malcriada que anunciava o tarifaço sobre produtos brasileiros caso o STF insistisse em processar Bolsonaro, foi mais um detalhe que ajudou a colar no Congresso a pecha de inimigo, agora não só do “povo” – dos pobres, dos trabalhadores –, mas do país.
Por isso mesmo é preciso atenção aos movimentos da política doméstica voltados para a campanha eleitoral de 2026.
O “nós contra eles”, expressão da luta de classes que sempre causou urticária na elite e que foi tão enfaticamente condenada pelos seus prepostos na imprensa hegemônica nos últimos dias, em resposta à campanha disseminada nas redes contra um Parlamento que inviabiliza qualquer medida do governo em favor de alguma justiça social, ganhou inesperadamente uma legitimidade inquestionável.
Mexer com os brios patrióticos de qualquer povo dá nisso. Até representantes da classe dominante ficam incomodados.
Por isso foi tão divertido observar a reação da grande imprensa, em particular a dos dois principais jornais paulistas, em seus editoriais do dia seguinte à agressão do presidente norte-americano. “Chantagem rasteira de Trump não passará”, escreveu a Folha, subitamente imbuída do espírito republicano antifranquista. “Coisa de mafiosos”, acusou o Estadão, num texto de surpreendente contundência, que provocou comentários jocosos, como o do jornalista Cid Benjamin, um dos mais conhecidos militantes contra a ditadura e cofundador do PSOL:
Está todo mundo estranhando o editorial do Estadão, com uma combatividade inesperada.
Explico o que ocorreu.
Era feriado, 9 de julho, dia em que os paulistas prestam homenagens à República Velha. Os Mesquitas saíram pra um almoço de comemoração da efeméride e a redação do texto ficou a cargo de um estagiário. Resultado: ele ficou à esquerda até mesmo da posição do PSOL...
Impossível não comparar esse editorial com o que o jornal publicou em 8 de outubro de 2018, em seguida ao primeiro turno da eleição daquele ano: “Uma escolha muito difícil” opunha o “truculento apologista da ditadura militar” ao “esquerdista preposto de presidiário”. Centrava-se na questão econômica – porque, afinal, o que importava era o saneamento das contas públicas, a manutenção do teto de gastos e da reforma trabalhista definidos pelo governo Temer – e, se deplorava a ausência de qualquer proposta de Bolsonaro nesse campo, investia fortemente contra as teses do PT, que “lograram mergulhar o país numa profunda crise econômica, política e moral”.
Por sinal, o texto ressaltava exatamente o aspecto moral da campanha, planejada “de dentro da cela de Lula da Silva na Polícia Federal de Curitiba”, o que não seria segredo porque “até o programa de governo apresentado por Haddad se chama[va] ‘Programa Lula’”. De modo que, apesar da afetação de equidistância, não restava muita dúvida quanto à solução do terrível dilema entre a “ameaça” do retorno à “irresponsabilidade lulopetista”, ainda mais comandada por um presidiário, e o truculento defensor da ditadura, que afinal foi um mal menor diante do perigo vermelho que rondava o país e está sempre à espreita.
É claro que o Estadão nem de longe podia imaginar o que aquele parlamentar que entrou para a política depois de afastado do Exército por tramar um plano terrorista em defesa do aumento do soldo, que assumiu a necessidade de dar um golpe, fechar o Congresso e “matar uns 30 mil” numa famosa entrevista a um programa televisivo irrelevante mas que, uma vez no ar, alcança repercussão até hoje, que deveria ter perdido o mandato ao exaltar o ícone da tortura no Brasil ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff e que pautou toda a sua campanha na base de mentiras descaradas e ameaças frontais aos mais elementares princípios democráticos, é claro que o Estadão nem de longe poderia imaginar o que aquele parlamentar poderia fazer caso assumisse a presidência da República.
Agora, diante desse “espantoso episódio” de atentado à soberania nacional, conclui que ele “serve para demonstrar, como se ainda houvesse alguma dúvida, o caráter absolutamente daninho do trumpismo e, por tabela, do bolsonarismo”. Detona o governador paulista, por ora o candidato de estimação da Faria Lima, enquanto a Folha apenas o chama a escolher de que lado está: “Vestir o boné de Trump, hoje, significa alinhar-se a um troglodita que pode causar imensos danos à economia brasileira”. Chama Bolsonaro de irresponsável, classifica-o, ao lado de Trump, de “dejetos da democracia”, e exorta “aqueles que são verdadeiramente brasileiros” de não se curvarem à sabujice.
É quase um Churchill diante da agressão nazista: “We shall never surrendeeeeeeerrrrrr!!!!!”.
Pois sim, é muito bonito demonstrar tamanho fervor patriótico, mas ninguém há de se enganar sobre o lado que esta imprensa continua a defender na... luta de classes.
A propósito, o Jornal Nacional dedicou todo o seu primeiro bloco da edição de 10 de julho à repercussão negativa da carta ameaçadora, tanto na imprensa estrangeira quando entre empresários brasileiros, e abriu espaço para uma longa entrevista em que Lula foi muito enfático na defesa da soberania nacional e na atuação do STF na condução do processo contra a tentativa de golpe de Estado. A edição, entretanto, não deu um pio sobre as manifestações daquela noite.
Como escreveu o professor de relações internacionais da UFRJ Elídio Borges Marques num comentário no Facebook, “embora o conjunto do jornal tenha sido favorável ao Lula (falta de opção da burguesia exportadora?), após o término os entrevistadores o ‘corrigiram’, informando que o julgamento de Bolsonaro ainda está ocorrendo, que ele disse que não queria dar golpe, não. Depois, mais um capítulo da fase ‘tapas na cara’ da novela Vale Tudo (Solange black bloc meteu a mão na cara de Maria de Fátima trumpista). E depois... o imperdível documentário sobre a trajetória do Dr. Roberto explicando exaustivamente como, depois de uma distração inicial, a Vênus cobriu linda e corajosamente – sob ameaças de helicópteros armados na janela – a campanha das Diretas. No dia em que, mais uma vez, ignorou o mais importante. Depois da equivalência entre as manifestações “Ele Não” e “Ele Sim”, não deixa de ser irônico. Viva o Dr. Roberto, a quem devemos a nossa democracia. Na medida em que eles quiserem”.
Para concluir, recorro a outro post de Elídio, que me parece ter sintetizado com muita clareza a importância da reação do governo e o que nos aguarda daqui em diante:
O conjunto de lapadas no Trump e no trumpismo brasileiro – oficialmente chamado de ‘Entrevista de Lula ao Jornal Nacional’, bem como a outros órgãos de comunicação – é um forte indício de que:
1. o veterano, quando quer, se posiciona.
2. o veterano, quando precisa, se posiciona.
3. o veterano, quando sente as bases sociais se mexerem, se posiciona.
Lula não é um salvador da pátria, mas é um agente de características particulares e ainda, felizmente, muito capaz de refletir o movimento real do campo popular e, com isso, incentivá-lo.
Nosso – partilho inteiramente a sensação e responsabilidade – entusiasmo com os ‘jabs’ de hoje não pode nos distrair por muitas horas de que:
1. as direitas estão agindo e agora, grande parte delas e da classe dominante, está disponível para participar de acordos.
2. os atos foram bastante positivos e importantes para o campo popular, sinalizando um potencial de desenvolvimento.
3. a direção do campo lulista ainda está longe de ter jogado toda a força nas mobilizações, com as quais está desacostumada.
4. o veterano e seus partidários tendem sempre à conciliação (ele próprio anunciou que a resposta será concertada com o empresariado).
5. o impulso mobilizador – nas redes e ruas – é decisivo não apenas para conter as forças nefastas e vorazes da direita no congresso como para manter vivo este impulso animador de Lula.
Acordos serão discutidos nos próximos dias. Cabe a nós traçar no chão o risco do qual não aceitamos passar. E, sobretudo, fortalecer neste ‘embate’ o nosso polo, o que sabe que as lutas contra Trump, Bolsonaro, a injustiça tributária, a hiperexploração da classe trabalhadora e o ‘centrão’ fazem parte de uma mesma grande luta e que no lado de lá dela não pode haver mais que eventuais aliados muito táticos e que todos já provaram ser absolutamente não confiáveis.
Acordos serão discutidos nos próximos dias, e não só no âmbito da nossa diplomacia. No mesmo dia da grande repercussão da resposta a Trump, os jornais voltaram a noticiar que Lula vem negociando para que o ex-presidente da Câmara Arthur Lira, o grande artífice do orçamento secreto e das manobras que em tantas vezes decisivas emparedaram o governo, concorra ao Senado por Alagoas. Isso, num contexto em que a extrema-direita vem fazendo campanha para ter maioria na Câmara e no Senado, o que lhe permitiria governar de fato o país, anistiar os golpistas, alterar a Constituição, interferir na composição do STF, independentemente de quem seja o presidente.
Estaria aí um dos limites essenciais que esse risco a ser traçado no chão nos obrigaria a respeitar?
São escolhas.
Acertou bem nas bolas
Simbora...