STF arquivou caso Rubens Paiva indevidamente, 'por engano', duas vezes, sem análise da Lei de Anistia
Não fosse Raquel Dodge, a quem nunca criticamos, o Supremo teria enterrado a ação penal contra cinco militares que participaram da tortura, homicídio e ocultação do cadáver do ex-deputado na ditadura.

Em maio de 2014, mais de 10 anos antes da estreia do filme “Ainda estou aqui”, o Ministério Público Federal denunciou cinco militares do Exército por participação na tortura, assassinato e ocultação do cadáver do ex-deputado Rubens Paiva na ditadura empresarial-militar. A denúncia, feita a partir dos depoimentos e apuração da Comissão Nacional da Verdade, foi reproduzida na íntegra por Marcelo Rubens Paiva no livro “Ainda estou aqui”, no qual o filme é baseado.
Foram denunciados em 2014 o general de divisão José Antônio Nogueira Belham; o coronel Rubens Paim Sampaio; o também coronel Raymundo Ronaldo Campos; e os capitães e irmãos Jurandyr Ochsendorf e Souza e Jacy Ochsendorf e Souza. Quando a denúncia foi feita, todos os militares já estavam reformados.
Logo após, o juiz Caio Márcio Gutterres Taranto, da 4ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, aceitou a denúncia e abriu uma ação penal contra os cinco militares com base no entendimento de que crimes contra a humanidade, como homicídio qualificado por tortura, não prescrevem nem são passíveis de anistia. Começava ali o caso Rubens Paiva.
Ainda em 2014, os assassinos, torturadores e ocultadores de cadáver apareceram para reclamar no Supremo Tribunal Federal, levando embaixo do braço a sua carta “Saída Livre da Prisão” - a Lei de Anistia. A Reclamação 18.686 foi protocolada no dia 23 de setembro daquele ano e foi distribuída para o ministro Teori Zavascki.
Menos de uma semana depois, no dia 29 de setembro, em decisão liminar monocrática, Zavascki atendeu aos reclamantes e suspendeu a ação penal, considerando que os crimes imputados aos cinco militares eram, sim, abrangidos pela Lei de Anistia, cuja constitucionalidade tinha sido afirmada pelo Supremo quatro anos antes, em 2010, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153. De lá para cá, o caso praticamente não andou.
Come Ananás analisou de perto os autos do caso Rubens Paiva no Supremo e cosntatou que Teori Zavascki, após conceder a liminar, ignorou requisição da Procuradoria-Geral da República para pautar o julgamento em plenário e fez ouvidos moucos até a seguidos apelos da PGR para que fosse ouvida com urgência, antes na análise do mérito, uma idosa com câncer que testemunhou o sequestro do ex-deputado. Após a morte de Zavascki, o caso chegou a ficar quase um ano sem relator, até ser redistribuído para Alexandre de Moraes, que passou anos a fio sem despachar sobre ele.
Até que saiu um filme baseado em um livro.
Entre 2015 e 2017, o Supremo chegou a dar o caso Rubens Paiva como transitado em julgado, “por engano”, duas vezes, sem que acontecesse o julgamento que poderia - e ainda pode - resultar na revisão da Lei de Anistia.
Silêncios
A Reclamação 18.686 foi enviada por Teori Zavascki à Procuradoria-Geral da República, para manifestação, no dia 10 de outubro de 2014, após a emissão da liminar. Dois meses depois, em dezembro, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, lembrou a Zavascki que, após o julgamento da ADPF 153, “a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu ser indevida a extinção, pela Lei de Anistia, da punibilidade de agentes envolvidos em graves violações aos direitos humanos no período pós-64, sob fundamento de prescrição da pretensão punitiva do Estado”.
“A República Federativa do Brasil - disse Janot - submeteu-se voluntária e soberanamente à jurisdição da Corte IDH. As decisões da corte são vinculantes para todos os órgãos e poderes do país”.
Além disso, Janot assinalou no parecer que, de qualquer maneira, os efeitos da declaração de constitucionalidade da Lei de Anistia não se aplicam ao crime de ocultação de cadáver:
“Se a anistia é ‘lei penal de efeito retroativo, constituindo verdadeira revogação parcial da lei anterior’, ‘apagando o crime, extinguindo a punibilidade e demais consequências de natureza penal’, envolve o perdão e opera no passado. Também por isso, o delito de ocultação de cadáver não pode ser abrangido pela anistia da Lei 6.683/1979, pois a conduta ilícita imputada aos réus ora reclamantes constitui crime permanente”.
Assim, a PGR manifestou-se pela improcedência da Reclamação 18.686 e pediu urgência no julgamento, “especialmente diante do fato relevantíssimo de haver pendência de produção de provas testemunhais de pessoas com idade muito avançada, o que pode ensejar perecimento de provas a serem angariadas em prol da justiça, como forma de demonstrar cabalmente os elementos já constantes da denúncia”.
Mudaram as estações, e nada de Teori Zavascki tomar uma decisão. Em maio de 2015, Janot insistiu, pedindo que o ministro autorizasse pelo menos os depoimentos de três testemunhas idosas e portadoras de doenças graves, inclusive uma testemunha do sequestro de Rubens Paiva que estava em tratamento contra um câncer de mama.
De novo, silêncio no gabinete do ministro relator.
No mês seguinte, em junho, o então procurador-geral da República em exercício, Eugênio Aragão, voltou a requerer urgência na apreciação do pedido. Só em setembro de 2015, nove meses após a requisição original da PGR, Zavascki finalmente autorizou a produção antecipada de provas, enquanto não vinha o julgamento da Reclamação 18.686.
Nunca veio.
Logo depois, em outubro de 2015, surpreendentemente, a Reclamação 18.686 apareceu no sistema do STF como transitada em julgado, sem ter ido a plenário. Em novembro, Teori Zavascki “reabriu” a reclamação, voltando a despachar no âmbito do processo para atender a outra petição dos assassinos reclamantes. Na decisão, Zavascki determinou que a produção antecipada de provas se limitasse aos depoimentos das três testemunhas com problemas graves de saúde.
Teori Zavascki morreu em 19 de janeiro de 2017, em um acidente de avião. Três meses depois, em abril de 2017, a Reclamação 18.686 voltou a ser dada pelo Supremo como transitada em julgado, por mais que seguisse faltando o julgamento.
Pachorra: falta de pressa ou de aplicação; calma excessiva, paciência embotada
O planeta dá uma volta completa em torno do sol, e no dia 19 de janeiro de 2018, exatamente um ano após a morte de Teori Zavascki e na véspera do aniversário do sequestro de Rubens Paiva pela ditadura, a então procuradora-geral da República, Raquel Dogde, requereu o desarquivamento dos autos e concessão de vista, “com a finalidade de verificar possível falha procedimental que teria redundado no arquivamento indevido da referida reclamação, sem o exame definitivo do mérito”.
A então presidente do STF, Carmen Lúcia, atendeu ao pedido, desarquivando o processo e dando vistas à PGR. No dia 1º de fevereiro de 2018, em novo parecer ao Supremo, Raquel Dogde manifestou-se, também ela, pela improcedência da Reclamação 18.686 e pelo processamento e julgamento da reclamação “em caráter prioritário”, solicitando a redistribuição do processo, que ainda estava vinculado a Zavascki, mais de um ano após a morte do ministro.
“Reitero as considerações de mérito já apresentadas pelo Ministério Público Federal, em especial no que diz respeito à necessidade de assegurar a vedação à proteção deficiente, ao reconhecimento da imprescritibilidade dos crimes de tortura, aos procedentes interacionais relacionados ao tema e, em especial, a necessidade de reflexão a respeito do alcance da anistia reconhecida na ADPF 1 53/DF. No tocante à conexão de crimes, vale lembrar que a natureza permanente do crime de ocultação de cadáver afasta por completo qualquer cogitação de prescrição”, disse Dogde sobre o mérito da causa.
“Verifica-se do andamento processual que, em mais de uma oportunidade, esta Reclamação foi arquivada e certificado o trânsito em julgado indevidamente, sem que tenha havido o julgamento do mérito da controvérsia, ou ao menos, qualquer decisão do ministro relator a respeito da matéria de fundo da demanda”, disse Dodge sobre os “equívocos” de tramitação.
Duas semanas depois, no dia 16 de fevereiro de 2018, a Reclamação 18.686 foi redistribuída por sucessão para o substituto de Teori Zavascki no Supremo, Alexandre de Moraes. Em 2021, chegou ao STF, e também ficou com Moraes, uma outra petição relativa ao caso Rubens Paiva: o Recurso Extraordinário com Agravo 1.316.562, interposto pelo MPF contra um Habeas Corpus conseguido pelos torturadores, assassinos e ocultadores do cadáver de Rubens Paiva no Superior Tribunal de Justiça.
A Reclamação 18.686 ficou conclusa ao relator, aguardando Alexandre de Moraes, em dezembro de 2018; o ARE 1.316.562, em março de 2021. E nada de Moraes despachar. Talvez não pudesse ser incomodado enquanto agia contra as fake news e as milícias digitais, constituindo-se em xodó da Democracia. De modo que o caso Rubens Paiva ficou assim, anos e anos no escaninho de Xandão, até que estourou no Brasil um grande campeão de bilheteria: “Ainda estou aqui”.
Em novembro do ano passado, após a estreia e o sucesso do filme nos cinemas brasileiros, Moraes finalmente despachou, extinguindo a Reclamação 18.686 e enviando a ARE 1.316.562 à PGR, para enésima manifestação da PGR sobre o caso Rubens Paiva.
No último 28 de janeiro, cinco dias após “Ainda estou aqui” ser indicado ao Oscar, a PGR respondeu dizendo que o Supremo deveria julgar se a Lei de Anistia se aplica ao caso Rubens Paiva, em vez de arquivar a ação aberta pela Justiça Federal do Rio de Janeiro.
“O crime de ocultação de cadáver, imputado aos denunciados na ação penal originária, não seria suscetível da anistia instituída na Lei 6.683/1979 (Lei de Anistia), tendo em vista seu caráter de permanência porquanto nunca se revelou o paradeiro do corpo, impedindo, assim, a consumação do lapso temporal prescricional e o consequente trancamento da ação penal”, disse a subprocuradora-geral da República Maria Caetana Cintra Santos no parecer enviado ao STF.
No lapso da pachorra judiciária aliada ao trancamento da memória, da verdade e da Justiça pelo Exército Brasileiro, morreram desde a denúncia feita em 2014 pelo MPF a viúva de Rubens Paiva, Eunice Paiva, em 2018, e três dos cinco militares do Exército imputados pelo homicídio e sonegação do corpo do ex-deputado: os coronéis Rubens Paim Sampaio e Raymundo Ronaldo Campos e o capitão Jurandyr Ochsendorf e Souza.
As filhas do ‘Dr. Teixeira’ e os mortos pelo marechal Belham
Na denúncia de 2014, o MPF requereu inclusive “a perda do cargo público dos denunciados, oficiando-se aos órgãos de pagamento das respectivas corporações para o cancelamento de aposentadoria ou qualquer provento de reforma remunerada de que disponham”.
Com o processo parado, o Exército foi lá e fez o contrário.
A começar por Jurandyr Ochsendorf e Souza, que era vivo e capitão quando foi denunciado, mas hoje, morto, aparece no Portal da Transparência do Governo Federal como “instituidor de pensão” para sua viúva e sua filha no “posto de pagamento” de tenente-coronel, duas patentes acima da de capitão. E parece que já foram três. Em 2021, o Tribunal de Contas da União chegou a considerar as pensões ilegais “em virtude do cálculo do benefício com base em três graus hierárquicos acima [coronel] do ocupado pelo militar na ativa, sem amparo legal”.
O fato é que a União, via Comando do Exército, ainda paga um total de R$ 24.494,11 por mês à viúva e à filha de um militar que participou diretamente da farsa montada pelo Exército para fazer parecer que Rubens Paiva tinha sido resgatado por guerrilheiros no Alto da Boa Vista, quando, na verdade, Paiva já tinha sido torturado até a morte no Destacamento de Operações e Informações (DOI) do 1º Exército, na Tijuca.
Quanto aos outros dois militares do caso Rubens Paiva que morreram desde que o caso foi aberto, Rubens Paim Sampaio - o “Dr. Teixeira”, carniceiro da Casa da Morte, em Petrópolis - e Raymundo Ronaldo Campos, os dois eram coronéis quando foram denunciados e viraram réus, mas hoje, segundo o Portal da Transparência, a viúva e as três filhas do “Dr. Teixeira” e a viúva e a filha de Raymundo Campos dividem pensões de general - R$ 30.195,2 e R$ 26.104,09, respectivamente.
Em junho de 2019, meses antes de Raymundo Campos morrer, uma portaria do comandante da 1ª Região Militar concedeu a ele “os benefícios do Grau Hierárquico Imediato (GHI), no posto de general de divisão”.
O GHI é um benefício concedido a militares que são considerados inválidos e incapazes para o serviço. A 1ª Região Militar abarca o 1º Batalhão de Polícia do Exército, onde funcionou o DOI do 1º Exército, ali onde Rubens Paiva foi assassinado. Quem assinou a portaria foi o general Fernando José Sant’ana Soares e Silva, que no ano passado, após passar para a reserva, reclamou na imprensa que a reforma das pensões militares é um “bom passo” se o governo Lula “quiser acabar com as Forças Armadas”.
Quanto a Jacy Ochsendorf e Souza, um dos dois militares do caso Rubens Paiva que ainda estão vivos, ele era capitão reformado, como seu irmão morto, quando virou réu por ocultação de cadáver, fraude processual e quadrilha armada. Hoje, recebe R$ 23.457,15 por mês no como major.
E, por último, o igualmente bem vivo José Antônio Nogueira Belham, que era o comandante do DOI do 1º Exército quando Rubens Paiva foi assassinado naquelas dependências. Após ser imputado pelo homicídio, por motivo torpe - “busca pela preservação do poder usurpado em 1964”, conforme a denúncia do MPF - e com emprego de tortura, o general de divisão foi alçado ao posto de honra de marechal, na “farra dos marechais” no governo Jair Bolsonaro, revelada pela revista Fórum.
Ligado pela Comissão da Verdade a 19 mortes durante a ditadura, com cinco brasileiros, ao todo, até hoje desaparecidos depois de passarem por suas mãos no DOI do 1º Exército, o marechal Belham ganha hoje R$ 35.991,46 por mês, sem contar a gratificação natalina de R$ 17.995,73.
Em 2003, a esposa de José Antônio Belham, Maria de Fátima Campos Belham, foi assessora parlamentar no gabinete do então deputado Jair Bolsonaro na Câmara, gabinete onde anos depois Bolsonaro viria a fixar um cartaz alusivo à busca pelos desaparecidos da ditadura: “quem procura osso é cachorro”.
Em tempo (de guerra)
Em tempo: no Brasil, a patente de marechal foi extinta em 1967, mas voltou com a Lei Federal 6.880 de 1980, conhecida como Estatuto dos Militares. No entanto, conforme o artigo 16, parágrafo 2º do Estatuto dos Militares, “os postos de Almirante, Marechal e Marechal-do-Ar somente serão providos em tempo de guerra”.
Além de José Antônio Nogueira Belham, quem hoje também aparece no Portal da Transparência como marechal, enquanto “instituidor de pensão” para suas filhas e viúvas, são o torturador-mor Carlos Alberto Brilhante Ustra e o terrorista Newton Cruz, e o Comando da Força Aérea Brasileira paga pensão de marechal-do-ar à filha de João Paulo Moreira Burnier, que coordenou o sequestro de Rubens Paiva quando era comandante da III Zona Aérea, onde Paiva também foi torturado.
De fato, são todos insignes militares que se destacaram em tempo de guerra: a guerra suja contra o povo brasileiro.
No livro “Ainda estou aqui”, publicado em 2015, Marcelo Rubens Paiva afirma que “o caso Rubens Paiva está longe de terminar”. Ele cita a suspensão do processo por Teori Zavascki, em 2014, e as últimas palavras do livro são estas: “o caso não tem data para ir à plenária do Supremo”.
Uma década depois, o caso ainda não tem data para ir à plenária do Supremo. Com a mais recente manifestação da PGR, o caso Rubens Paiva está, desde 28 de janeiro, novamente concluso ao relator, para decisão do ministro relator a respeito da matéria. Com a palavra, Alexandre de Moraes.
Mas só se não for incomodar…
Esperamos que Alexandre de Morais coloque os olhos nesse processo para que a justiça faça a sua parte. Nos brasileiros precisamos passar o Brasil a limpo.