'Você é sócio da Light? E da Enel?'
O modelo privatista da "concessão" das distribuidoras de energia elétrica é um pacto de mediocridade que brilha no escuro.
A nenhum órgão da mídia privatista nacional poderá interessar uma pauta, um caso, entre tantos, de desventura das privatizações do Brasil, como é o caso das “concessões” das distribuidoras de energia elétrica, especialmente o seu dramático capítulo paulistano.
A quais interesses sui generis serviram essas concessões? Quais foram os interesses coletivos vilipendiados? E as mentiras que lhes serviram de baliza? E os gatos feitos nelas pelos entrepostos do poder econômico lotados no poder público? Quais foram as consequências para a população, 30 anos depois da “reestruturação do setor elétrico” levada a cabo por Fernando Henrique Cardoso?
Para a mídia corporativa, os problemas na distribuição de energia no Brasil são, no máximo, um trabalho para os Procons, quando muito para a Aneel. Em casos muito escancarados da panaceia “privatiza que melhora”, como o da Enel São Paulo, para o Ministério das Minas e Energia resolver. Nunca do modelo privatista em si.
Data de 2019, por exemplo, um clássico da dobradinha entre o modelo privatista e a mídia que lhe dá sustentação.
Naquele ano, um repórter do programa Bom Dia Rio, da Rede Globo, entrou ao vivo de um subúrbio carioca onde uma família teve a luz cortada por causa de duas contas atrasadas. Cena aviltante, mas pra lá de comum no Rio de Janeiro - no Brasil -, ela só tinha virado pauta do Bom Dia Rio porque algo nela tinha saído do script: quando funcionários da Light chegaram no local pra fazer o desligamento, um homem saiu da casa e atacou a pauladas o carro da companhia. Após relatar o acontecido, o repórter sugeriu olimpicamente que o morador trocasse os "dias de fúria" pelas "datas de vencimento", e recomendou botar o boleto da Light no débito automático.
Pela mesma época, o repórter da Light andava tirando selfies com o inenarrável Gabriel Monteiro.
Em novembro do ano passado, na semana mais quente de 2023, por cinco dias as luzes não brilharam e os ventiladores não giraram na favela do Vidigal, na Zona Sul do Rio de Janeiro. No Vidigal moram aproximadamente 13 mil pessoas. Naquela semana, a Light deixou não só o Vidigal sem energia, mas também a Rocinha e vários bairros populares da Zona Norte carioca. Na avenida Delfim Moreira, no Leblon, porém, o Hotel Marina seguiu aceso e não foi pelo morro Dois Irmãos, sobre o qual ergueu-se a favela do Vidigal. Agora em 2024, em julho, a Light chegou a deixar a Ilha do Governador 45 horas às escuras.
Entre as 20 distribuidoras de energia cujas concessões federais expiram de 2025 a 2031 - três décadas após os leilões de FHC -, a Light é a segunda da fila. A concessão vence daqui a menos de dois anos, em junho de 2026, porque em junho de 1996, na antiga Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, bateu-se o martelo pela entrega da companhia pelo Estado brasileiro para o Estado francês, com a maior fatia do leilão, de 34%, abocanhada pela estatal Electricité de France (EDF). Mais tarde, em 2005, a EDF acabou privatizada também, no governo Jacques Chirac.
Nas casas pobres e de classe média do Rio, costuma-se dizer assim quando um membro da família esquece a luz acesa, a porta da geladeira aberta, o ventilador ligado à toa, a televisão falando pras paredes: "você é sócio da Light?".
Uma pergunta retórica, evidentemente, além de melancólica pra caramba.
Em maio do ano passado, a gestora de “distressed assets” ("ativos problemáticos") WNT assumiu o controle da Light ao comprar, no dia 11 daquele mês, 15% da companhia. No dia seguinte, 12 de maio, a companhia pediu recuperação judicial. Poucos meses antes de pedir recuperação judicial, no final de 2022, a Light tinha distribuído R$ 94,5 milhões aos seus acionistas. Hoje, entre os acionistas-chave da Light, entre os acionistas à vera - não os da mitologia da “democracia dos acionistas” - estão Nelson Tanure e Beto Sicupira.
A Light agendou para a próxima quinta-feira, 17, uma reunião para prestar contas sobre o plano da companhia para reorganização da sua dívida. Está sentado? A reunião sobre a situação da companhia que leva luz ao Vidigal, à Rocinha e à Ilha do Governador será na ilha da Grã-Bretanha, na High Court of Justice da Inglaterra e do País de Gales, com os “bondholders” súditos do Rei Charles. Que Xou da Xuxa é esse?
Antes da Light, na fila das renovações das concessões das distribuidoras, só a EDP Espírito Santo, que tem contrato até o dia 17 de julho do ano que vem. A sede da EDP Brasil fica no bairro paulistano da Lapa (A EDP matriz fica em Portugal). No ano passado, no meio do grande apagão de novembro em São Paulo, quando até uma semana depois de um temporal dezenas de milhares de pessoas da capital e região metropolitana ainda estavam sem luz, sem enxergar nada muito bem; naquela feita, o presidente da EDP Brasil, João Marques da Cruz, saiu-se com essa:
"Não enxergo alterações significativas no processo. Acho que um processo de renovação de uma concessão por 30 anos não deve depender do fenômeno de um temporal que aconteceu numa sexta-feira à tarde em qualquer cidade, mesmo que a cidade seja São Paulo".
Completa a tríade de concessões de distribuição de energia que expiram ainda no governo Lula III a da Enel Rio de Janeiro. Pelo menos até dezembro de 2026 os habitantes de 66 cidades do estado seguiremos acendendo velas em quase todos os dias do verão, praticamente todo santo dia, a “depender do fenômeno de um temporal”, e não para nenhum santo, mas para o diabo da Enel, enquanto pagamos a segunda conta de luz mais cara do Brasil, atrás apenas da tarifa cobrada pela Equatorial Pará.
Há 28 anos, em novembro de 1996, a Companhia de Eletricidade do Estado do Rio de Janeiro (Cerj) foi vendida para um grupo formado pela chilena Chilectra S/A, pela portuguesa EDP (Eletricidade de Portugal S/A) e pela espanhola Endesa Desarollo S/A. No finzinho do século XX, a distribuição de energia na velha capital do Brasil colônia foi parar nas mãos da Península Ibérica. A velha Cerj virou Ampla, que hoje é a famigerada Enel Rio.
Já a concessão da Enel em São Paulo, onde na manhã deste domingo, 13, quase um milhão de pessoas estavam sem luz, de novo, pelo terceiro dia consecutivo; a concessão da Enel só termina em julho de 2028. Sempre, durante o mais novo apagão, as autoridades paulistanas, paulistas e federais falam em revogá-la antes, imediatamente, mas a saliva seca junto com a cidade, depois da chuva, à espera do próximo “fenômeno de um temporal numa sexta-feira”.
A privatização da distribuição de energia elétrica no Brasil é um pacto de mediocridade que brilha no escuro: feita pelo governo FHC, três décadas atrás, deve ser renovada, ratificada pelo governo Lula III, ainda que estejam postas as condições para revertê-la sem “rasgar contratos”. Isso no momento em que o restabelecimento da energia de políticas energéticas soberanas, via “desprivatizações”, é tendência em muitos países do mundo, mas no mundo que se dá ao respeito.
Quando a França decidiu comprar de volta 100% das ações da EDF, dois anos atrás, o ministro francês da Economia e Finanças, Bruno Le Maire, disse que a "renacionalização" da companhia era uma decisão estratégica, "porque a independência energética não tem preço". Mas dependência energética nos olhos dos outros é refresco e tem nome: imperialismo.
Sob a atuação do ministro brasileiro das Minas e Energia e do Centrão, Alexandre Silveira (PSD-MG), o governo Lula praticamente delegou ao Tribunal de Contas da União a condução das renovações das concessões das elétricas, diluindo o sentido necessariamente político da decisão, fosse ela qual fosse, em um emaranhado de decretos, incisos e alíneas onde a perpetuação do modelo privatista vira fato autoevidente, sem precisar ele mesmo de explicação, pela via de ponderações muito “racionais” e critérios muito “técnicos” extraídos da cartilha do neoliberalismo.
Alexandre Silveira só virou ministro no arranjo de Lula com o Centrão pela governabilidade porque em 2022 um senador golpista renunciou para virar ministro do TCU e Silveira, primeiro suplente, ocupou a cadeira vacante. O senador que renunciou, abrindo alas para a ascensão de Silveira, foi Antonio Anastasia, que foi o relator da Comissão do Impeachment de Dilma Rousseff no Senado e agora é quem cuida das renovações das concessões do setor elétrico no TCU. Mundo pequeno, esse que não se dá ao respeito. Depois, a surpresa quando muitos percebem o quanto pequeno virou o mundo da política e aderem às mais sinistras e irracionais aventuras “contra tudo isto que está aí”.
Na próxima terça-feira, 15, completam-se 29 anos - quase uma concessão de energia elétrica - de uma intervenção de Pierre Bourdieu feita no dia 15 de outubro de 1995 no Parlamento Internacional dos Escritores na Feira do Livro de Frankfurt. A intervenção depois ganhou um título, “os abusos de poder que se armam ou se baseiam na razão”, quando foi publicada em uma coletânea de “táticas para enfrentar a invasão neoliberal”.
Naquela intervenção, Bourdieu pontuou que a coerção econômica muitas vezes se disfarça de razões jurídicas e isso, “pela própria hipocrisia das racionalizações destinadas a mascarar os seus duplos critérios”, acaba suscitando no seio dos povos - e Bourdieu menciona nominalmente os povos sul-americanos - “uma revolta muito profunda contra a razão”.