'Ainda estou aqui': um raio de lucidez em meio ao Alzheimer nacional
No fim das contas é o que as ditaduras tentam extinguir na gente, mas que ainda estava ali, com Eunice/Fernandas: a sediciosa, perigosa, radiante centelha da lucidez.
Doze municípios, mais de seis mil quilômetros quadrados, quase um milhão de habitantes, quatro sessões, uma única sala de cinema.
Antes de ver o filme, vejo que “Ainda estou aqui” foi a segunda maior bilheteria de estreia nos cinemas brasileiros em 2024 e me pergunto “como?”, sabendo que na semana de estreia do filme eram estas as opções para assisti-lo em toda a região do Médio Paraíba, no Sul Fluminense, desde o alto da serra das Araras até a divisa com o estado de São Paulo: quatro sessões, uma única sala - uma sala de shopping - em Volta Redonda.
Menos mal: na segunda semana em cartaz, o filme entrou também em duas salas em Resende, também salas de shopping. Sem sabê-lo, na manhã deste sábado este morador de Resende comprou ingressos pela internet para assistirmos ao filme no fim do dia na sala do shopping Park Sul, em Volta Redonda, a exatamente 60 quilômetros de casa, 51 deles de Via Dutra.
Chegamos ao Park Sul com meia hora de antecedência para a sessão das 18:30h. A meia hora de folga minguou para 20 minutos, com 10 minutos perdidos só na enorme fila de carros formada do lado de fora do shopping, só para chegar até a cancela do estacionamento. Na cancela, um funcionário do “parking” apontou para dezenas, se não centenas de carros embolados nas pistas, pisca-alertas ligados, e disse: “todos esperando vaga”.
Nos olhamos: já era. Íamos perder o filme. Numa última jogada, tomamos a decisão de sair imediatamente do estacionamento, em vez de esperar vaga, antes que vencessem os 10 minutos de “carência” do ticket. Mesmo assim, seria difícil dar um jeito: o shopping fica no meio da rodovia dos Metalúrgicos, via expressa que liga Volta Redonda à Dutra, e simplesmente não havia onde enfiar o carro nas redondezas.
Conseguimos avançar em meio ao caos e saímos na espinha dos 10 minutos de ticket liberado. Estávamos, portanto, não entrando, mas saindo do estacionamento do shopping faltando pouco mais de 10 minutos para o início da sessão. Foi quando Priscila viu, passando o shopping, uma placa de “até 22h” na frente de um supermercado, não viu cancela e, rápida e mortal, virou de súbito o volante para a direita.
Em dois minutos estávamos na porta automática do shopping, de onde dava para ver - o shopping fica numa colina - o nosso velho Fox alinhado às pressas numa vaga apertada do estacionamento de uma loja da rede Atacadão. Mais dois ou três minutos de caminhada entre Riachuelos, Cacau Shows, Americanas e Caçulas, e abrindo caminho entre a verdadeira multidão espremida nos corredores, e estávamos na sala 5 do Cine Araújo Multiplex Park Sul.
Foi quando descobrimos que íamos assistir “Ainda estou aqui” numa “sala vip”: tela de prata 4K; acústica “premium”; poltronas que parecem de massagem e com encostos reclináveis quase a ponto de virar cama; não espaços, mas verdadeiros latifúndios entre as fileiras de poltronas.
Ali, prestes a assistir numa '“sala vip” a um filme sobre um desaparecido pela ditadura, foi inevitável lembrar do relato de Bernardo Kucinski sobre as cartas de banco que continuaram chegando para sua irmã, Ana Rosa Kucinski, após ela ser ser desaparecida pela ditadura também:
“A destinatária nunca aceitará a proposta mesmo não havendo cobrança de anuidade, mesmo podendo acumular pontos de milhagem e usar salas VIP nos aeroportos, tudo isso que ela teria mas não terá, tudo isso que quase não havia quando ela existia e que agora que ela não existe lhe é oferecido; inventário de perdas da perda de uma vida”.
“O carteiro nunca saberá que a destinatária não existe; que foi sequestrada, torturada e assassinada pela ditadura militar. Assim como o ignoraram antes dele, o separador das cartas e todos do seu entorno. O nome no envelope selado e carimbado, como a atestar autenticidade, será o registro tipográfico não de um lapso ou falha do computador, e sim de um mal de Alzheimer nacional. Sim, a permanência do seu nome no rol dos vivos será, paradoxalmente, produto do esquecimento coletivo do rol dos mortos”.
Ainda que a sala fosse “vip”, apesar disso, aquela fraçãozinha de pessoas que estavam no shopping para assistir “Ainda estou aqui” assistiram ao filme na maior educação: sem zum-zum, sem luzinhas de Galaxy e iPhone, ninguém moveu um músculo desde que Fernanda Torres/Eunice Paiva surgiu no mar do Leblon olhando preocupada a passagem rasante de um helicóptero do Exército.
Desde a cena inicial, passando pelo horror da tortura nas masmorras do 1º Exército, o horror da ditadura na rua e dentro das casas, dentro da gente, e até que Eunice Paiva/Fernanda Montenegro aparece numa cadeira de rodas, na frente de uma TV, em 2014, sofrida, castigada, apagada pelo Alzheimer avançado. E na TV começa a passar a notícia da apresentação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, e as fotos de Vladimir Herzog, Stuart Angel, e a foto de Rubens Paiva.
E a notícia na TV de um lampejo de enfrentamento do passado e a foto de Rubens Paiva devolvem por um instante ao rosto de Eunice, ao seu semblante, ao seu olhar, aquilo que no fim das contas é o que as ditaduras tentam extinguir na gente, mas que ainda estava ali: a sediciosa, perigosa, radiante centelha da lucidez.
Quase perdemos nossa sessão de “Ainda estou aqui”. Já subindo os créditos, quase desejei ter perdido. Além de tudo, é duro assistir ao filme do Walter, do Selton, das Fernandas, da brilhante Valentina Herszage de Veroca, sabendo que o governo, o nosso governo, demorou quase meio mandato para reativar a Comissão de Mortos e Desaparecidos da Ditadura, desativada por Bolsonaro, e vetou atos de memória crítica dos 60 anos do golpe militar.
É o nosso “mal de Alzheimer nacional”, como disse Bernardo Kucinski. O nosso “mal de Alzheimer nacional” sem cura também.
“O nome deles é gorila”, explicou o deputado cassado Rubens Paiva aos filhos, em carta de 60 anos atrás, quando teve que se enfiar às pressas na Embaixada da Iugoslávia em Brasília. Eles, os gorilas, ainda estão aqui também, e fazendo das suas.