As coisas típicas do Rio de Janeiro e a recomendação número 10 da Comissão da Verdade
A Constituição proíbe pena de morte, muito menos premeditada por governador e executada na mata por “tropa de elite”, e viver sem lei fundamental só interessa a quem quer ver o circo pegar fogo.

Em relatório enviado ao Supremo Tribunal Federal na última quarta-feira, 12, para ser anexado à ADPF das Favelas, o Ministério Público do Rio afirma que encontrou “lesões atípicas”, ou seja, sinais de execução, em dois e não mais que dois corpos de um total de 121 cadáveres resultantes da “megaoperação” — megachacina — rebentada pelo governador Claudio Castro no fim de outubro nos complexos de favelas da Penha e do Alemão, na zona norte da capital fluminense.
Ao contrário da Polícia Federal e da Defensoria Pública, uma “dispensada” e a outra barrada na morgue pelo governo Castro, o MPRJ, que participou diretamente da “megaoperação”, acompanhou as perícias cadavéricas feitas pelo Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto, órgão da Polícia Civil do Rio, coautora da matança. Na última quinta-feira, 13, o chefe do MPRJ, Antonio José Campos Moreira, atacou quem classificou a “megaoperação” de chacina e classificou a Defensoria Pública de “braço político, ideológico”.
Conforme o relatório do MPRJ entregue ao STF, um dos corpos com “lesões atípicas” tinha sinais de tiro a curta distância e o outro estava separado da cabeça — decapitado. O resto é o resto, típico do Rio de Janeiro como biscoito Globo, mate com limão e filé à Oswaldo Aranha: uma pilha de mortos com tiros de fuzil no tórax e no abdômen, “lesões características de confrontos armados”. No caso, o confronto-carnificina que terminou com saldo de quatro policiais mortos e quase 30 vezes mais “narcoterroristas neutralizados” — 117, e sem notícias de feridos.
Uma vez que a Constituição do Brasil proíbe expressamente a pena de morte, muito menos premeditada por governador de estado e executada no meio da mata por “tropas de elite”; uma vez que viver sem lei fundamental só interessa a quem quer ver o circo pegar fogo, o ministro do STF Alexandre de Moraes, relator provisório da ADPF das Favelas, vem cobrando de Claudio Castro a preservação de provas e informações detalhadas sobre como exatamente uma operação supostamente para cumprimento de mandados descambou para a ação policial mais letal da história do Rio justamente na vigência das determinações da ADPF para redução da letalidade policial no estado.
Mas apenas 77 dos 215 policiais do Bope (tropa de elite PMERJ) e não mais que 57 dos 128 agentes da Core (tropa de elite da Civil) que participaram da açougaria na serra da Misericórdia tinham câmeras das fardas. Na maior mobilização policial da história do Rio, que teria sido planejada com meses de antecedência, menos de 40% dos “caveiras” do Bope (“entrar pela favela e deixar corpo no chão”) e dos “falcões” da Core (“invade o Jacaré para matar o traficante”) usavam câmeras corporais, ao arrepio do que determina a ADPF das Favelas, chamada por Castro de “maldita”.
‘Narcolegistas’ também?
Na primeira chacina policial no Rio de Janeiro no governo Wilson Witzel-Claudio Castro, a chacina do Fallet-Fogueteiro, em fevereiro de 2019, quando 15 jovens da arraia-miúda do tráfico foram trucidados por PMs na região central da capital, o Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto também acusou em um dos cadáveres sinais de tiro a curta distância, entre 5 e 50 centímetros, além de “andares da base do crânio fraturados”. Mas havia relatos de moradores do Fallet-Fogueteiro sobre outras “lesões atípicas” nos corpos que não apareceram nos laudos de necropsia.
Na época, o então ouvidor-geral da Defensoria Pública do Rio, Pedro Strozenberg, questionou o fato de todo o setor de polícia técnica fluminense, como os de outros estados, estar subordinado à Secretaria de Estado de Polícia Civil: “quais são as condições de autonomia e independência das perícias?”.
Após a matança de 117 “narcoterroristas” na Penha e no Alemão, o chefe da Civil, delegado Felipe Curi, disse numa entrevista coletiva que é preciso “desmistificar um bando de mentiras e de falsas narrativas de narcoativistas que estão querendo condenar a operação”. Da acusação de “narcoterroristas” para a de “narcoativistas” (perigosa escalada da pecha de “defensor de bandido”), foi um pulo. De “narcoativistas” para “narcolegistas”, pode ser outro.

Mais tarde, quando a Human Rights Watch encaminhou os laudos de necropsia da chacina do Fallet-Fogueteiro para análise de institutos forenses internacionais, constatou-se diversos “erros”, como a falta de observância de padrões profissionais e científicos mínimos, descrições inadequadas das lesões externas e internas das vítimas e autópsias realizadas em tempo insuficiente (em 10, 30 ou 40 minutos) para casos complexos com múltiplas lesões traumáticas.
A chacina do Fallet-Fogueteiro ficou por isso mesmo.
‘Possivelmente, se tivéssemos…’
Em dezembro de 2014, na apresentação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, a CNV apresentou também 29 recomendações ao Estado brasileiro com a finalidade de fortalecer a democracia e evitar a repetição da ditadura. A recomendação número 10 era essa: “desvinculação dos institutos médicos legais, bem como dos órgãos de perícia criminal, das secretarias de segurança pública e das polícias civis”.
Há dois anos, em 2023, o Instituto Vladimir Herzog publicou o resultado de um monitoramento das recomendações da CNV. Do total de 29 recomendações, apenas duas (7%) foram realizadas — introdução de audiência de custódia e revogação da Lei de Segurança Nacional; seis (21%) foram parcialmente realizadas; 14 (48%) não foram realizadas, entre elas a recomendação número 10; e em sete (24%) houve mesmo retrocesso.
Diz o documento, intitulado “Fortalecimento da democracia”:
“Após a entrega do relatório final, realizada em 10 de dezembro de 2014, estava prevista a criação de um órgão permanente com o objetivo de dar prosseguimento às recomendações da comissão, tal como sugere a recomendação 26. Em 2016, a criação deste órgão chegou a ser discutida, mas não houve implementação, em razão da deposição da ex-presidenta Dilma Rousseff. Com os rumos políticos do país, especialmente o impeachment de Dilma e a ascensão do bolsonarismo, o legado da CNV foi deixado completamente de lado. Possivelmente, se tivéssemos efetivado todas ou boa parte dessas recomendações, não teríamos sofrido ataques sucessivos à nossa democracia, já que essas recomendações versam, acima de tudo, sobre o aprimoramento do Estado democrático de direito”.
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