Esta casa, este país
"Ainda estou aqui" narra uma história brutal com a aposta na “radiante centelha da lucidez”.
A menina está sentada no chão da varanda, em frente à porta de entrada. Olha desolada para dentro da casa que terá de abandonar dali a pouco. A mãe chega e senta-se em frente a ela, cruza os braços com as mãos cerradas, para que a filha descubra o que esconde. O rosto da menina se ilumina: é seu último dente de leite, que ela e o pai haviam enterrado na areia da praia – e que o pai, mas isso ela não sabia, havia desenterrado logo depois para guardá-lo numa caixinha. Como você descobriu? Só eu e papai sabíamos onde estava...
De todos os artigos que li sobre Ainda estou aqui, apenas o de José Geraldo Couto menciona esta cena, à qual atribui “um significado pungente, iluminando as relações entre pais e filhos”. Penso que é mais que isso: imediatamente, a recuperação do dente de leite é um símbolo da preservação da memória naquele momento de ruptura. Mas o sentido mais profundo desta breve cena só se completa mais tarde, quando, vinte e cinco anos depois, a família recebe o atestado de óbito do pai, o que é um alívio porque significava o reconhecimento oficial de sua morte, embora – e isso não está no filme, nem poderia – a certidão mencionasse apenas o desaparecimento, e só tenha sido retificada em janeiro de 2025, atendendo a determinação do Conselho Nacional de Justiça, para assinalar a causa da morte, “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”. Conversando com o irmão, a menina já adulta lhe pergunta quando foi que enterrou o pai, e diz que para ela esse momento foi ali, na hora da mudança: quando olhava desolada para a casa vazia e entendeu que ele jamais voltaria, que aquela era uma despedida para sempre.
A cena da recuperação do dente de leite também reitera o papel central da casa como personagem, algo que tanto Zé Geraldo como outros críticos e comentaristas assinalaram: a casa luminosa, alegre, cheia de vida, que se transforma com a chegada dos policiais, escurece com as cortinas fechadas, emudece sob o peso daquela invasão silenciosa e vai se desorganizando e degradando até que sobram apenas as marcas dos quadros nas paredes e papéis espalhados pelo chão.
Há também outra casa, ainda em projeto, que a família comemora fincando estacas no terreno e mostrando a maquete, numa das muitas cenas festivas documentadas em Super-8, e que vai também desaparecer quando Eunice Paiva, já ciente da morte do marido, decide vender o terreno e retira aqueles marcos que delimitavam o espaço da futura construção.
Mas há ainda uma terceira casa, em São Paulo, onde a família se reúne com amigos para um almoço, num ambiente alegre e ruidoso que contrasta com o silêncio de Eunice, idosa, em cadeira de rodas e já em estágio avançado de Alzheimer. Deixada sozinha na sala enquanto os outros se divertem na varanda, ela observa a TV com ar ausente mas, subitamente, seu rosto se ilumina ao ver a foto do marido, no noticiário sobre as conclusões do trabalho da Comissão Nacional da Verdade. Então, como escreveu Hugo Souza, “a notícia na TV de um lampejo de enfrentamento do passado e a foto de Rubens Paiva devolvem por um instante ao rosto de Eunice, ao seu semblante, ao seu olhar, aquilo que no fim das contas é o que as ditaduras tentam extinguir na gente, mas que ainda estava ali: a sediciosa, perigosa, radiante centelha da lucidez”.
José Geraldo Couto ressalta que a capacidade do diretor, Walter Salles, de expor o que há de universal numa trajetória particular, faz com que o filme funcione como metonímia: é “a tragédia de uma mulher, de uma família, de um país”. Mas essa tragédia é narrada de maneira delicada – algo que o crítico Inácio Araújo considerou despolitizante –, sem recorrer a cenas de violência explícita, porém, por isso mesmo, alcançando uma densidade muito maior. Não só nas cenas da presença pesada e quase muda dos policiais na casa, ou do carro postado do outro lado da rua em permanente vigilância, mas no momento em que Eunice e uma das filhas são presas e têm de colocar o capuz: a tela escura é uma forma sutil e poderosa de produzir na plateia o efeito opressivo e aterrorizante daquela situação.
Apesar de tratar de uma tragédia provocada pela brutalidade da ditadura, o filme enfatiza a vida, não a morte, como observou Antonio Prata. “É uma história sobre a força luminosa daquela família, encabeçada por Eunice Paiva. A linda fotografia trabalha neste sentido. Começamos na praia e ensolarados vamos até o momento em que os carniceiros entram na casa e fecham as cortinas. O breu permanece até Eunice sair da prisão e escoa pelo ralo na belíssima cena do banho. Dali em diante, apesar das trevas em que os Paiva são atirados, o sol volta a brilhar. Terminamos com a luz refletida nos tacos da casa”.
A foto da família reunida na areia do Leblon, no dia da alegre despedida da filha mais velha, que passaria uma temporada em Londres – no dia em que o pai simulou cumplicidade com a caçula ao prometer que seria um segredo só deles o local onde enterrariam aquele último dente de leite – aparece em vários momentos e funciona como fio condutor para recuperar ao final a luminosidade do início: na casa de São Paulo, família e amigos se reúnem na varanda para a foto que repetiria a cena de décadas atrás na praia. Na cadeira de rodas, Eunice está novamente mergulhada no alheamento. No momento da foto, em mais um lampejo, abre um sorriso. Sentado no chão, abraçado à mãe, o neto, esperança de futuro.
Vi o filme tardiamente, porque apenas em meados de janeiro estreou em Portugal. Fui num dia de semana, na primeira sessão. Havia pouca gente, não mais que trinta pessoas, e pelo menos um terço saiu assim que o filme terminou, sem se importar com o fato de que muitos filmes, como este, continuam durante a passagem dos créditos. Ali, de novo, a importância da casa, nas fotos originais e do set de filmagem, combinadas com fotos da família e dos atores que interpretam as cenas.
É preciso ver o filme até o fim.
Mas bem que poderíamos ter um lugar para digerir em silêncio o que acabamos de assistir. Depois de pouco mais de duas horas de imersão numa obra que nos afeta de múltiplas maneiras, e tão profundamente, sair da sala escura para o ambiente feérico de um shopping produz uma sensação muito estranha.
Ao ler aqui me dei conta de que a cena do dente, que te toca, é mais um enterro no filme (com posterior desenterro, que só a mãe será capaz de revelar). Quantas coisas a gente guarda em uma casa, quantas histórias em cada coisinha que fica esquecida nas gavetas e o quanto elas nos servem em horas futuras... A cena que me dilacerou no filme é a de outro enterro, a do cachorro. Eu só conseguia (chorar e) pensar: "que caralho de país em que - eu sabia, eles não - é possível respeitar honras fúnebres ao cachorro, mas será vedado enterrar o próprio pai?!". E tinha me esquecido, mas também lembrei agora, da alegria que senti pelo lugar onde assisti: fomos a uma sessão no Cine Brasília, não sei se logo no fim de semana da estreia ou no segundo. A fila serpenteava imensa, o hall dos fundos totalmente cheio, eu um pouco tensa com a hipótese de perder meu marido naquela pequena multidão - nos perdemos em outra bem maior dias antes e foi um enrosco pra reencontrar. Entive tão feliz com o alarido das pessoas, a pipoca, a curiosidade, o entreouvir das conversas. O domingo no cinema. Gente de todas as idades, muitos jovens. Quando saímos era puro silêncio, eu não quis falar nada - coisa bem rara - mas fiquei presa na importância de enterrar, despedir-se pra se ter certeza de que o outro, que tantas vezes dizemos que perdemos, na verdade não se perdeu. Parei sob as árvores velhas só por um minutinho e rumei meio desconcertada ao prédio vizinho, onde minha filha me esperava. Um abraço, Sylvia!