Folha: jura que sempre defendeu a democracia?
Documentário sobre a colaboração do jornal com a repressão amplia alcance de uma história conhecida há vinte anos.

A atual democracia brasileira tem 35 anos.
Mais da metade dos eleitores tem menos de 40 anos.
E a Folha vai fazer 100 anos.
Por isso, nós vimos.
E nunca esqueceremos os horrores da ditadura.
E sempre defenderemos a democracia.
Folha de S.Paulo: use amarelo pela democracia.
Em 27 de junho de 2020, a Folha de S. Paulo lançou esta campanha em defesa da democracia. Estávamos em pleno desgoverno Bolsonaro, que “ultrapassava todos os limites”, humilhava sistematicamente a imprensa, ofendia o STF e fazia pouco caso da pandemia, que, em quatro meses, contabilizava oficialmente mais de 92 mil mortes e seguia em escalada.
O vídeo remetia à mais famosa e premiada peça publicitária do jornal – “Hitler”, que terminava com a frase notável: “É possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade” – e utilizava uma foto de Evandro Teixeira que está entre as mais simbólicas do período da ditadura, na qual dois policiais perseguem um estudante, que viria a ser um dos vários mortos naquela manifestação na Cinelândia, em junho de 1968. O apelo ao amarelo em nome da democracia, ainda que contraditório com a adoção dessa cor pelos “patriotas” que foram às ruas para derrubar Dilma e passaram a apoiar Bolsonaro, era também uma remissão à campanha que o jornal lançou em 1984, quando se engajou no movimento pelas Diretas Já.
É importante recordar esta peça publicitária num momento em que voltam à tona as evidências da colaboração da Folha com o regime militar, expostas agora no documentário Folha Corrida, cujo primeiro episódio foi exibido no último domingo, 27 de abril, pelo ICL. O hoje mais que centenário jornal certamente viu os horrores da ditadura, mas não só a apoiou desde o primeiro momento como contribuiu com ela de um modo muito especial, cedendo suas camionetas para a repressão aos grupos armados que combatiam o governo de exceção.
O documentário se baseia na pesquisa que deu origem ao livro A serviço da repressão: Grupo Folha e violações de direitos na ditadura, e que foi viabilizada por parte dos recursos oriundos de um acordo entre a Volkswagen e o Ministério Público Federal, em 2021, no qual a empresa assumia sua colaboração com o regime e a perseguição a seus funcionários naquela época. A pesquisa é parte do projeto “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura”, conduzido pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF/Unifesp) em parceria com o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado de São Paulo. São 13 empresas cujos indícios de colaboração com a ditadura foram apontados durante os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade. Dessas, apenas o Grupo Folha pertence ao setor da comunicação, e agora responde a inquérito aberto pelo MPF, sustentado pelos resultados da pesquisa.
O mérito desse trabalho é, portanto, indiscutível, e transformá-lo em documentário amplia enormemente o alcance dessa denúncia. O problema é apresentá-la como inédita. Toda a propaganda do ICL, nas mensagens do grupo de WhatsApp formado para divulgar a estreia do primeiro episódio do filme, e reiterada de diversas formas nas mídias sociais e no dia da exibição, foi nesse sentido: “Um pedaço da história que foi escondido e agora vem à tona”. “Faltam apenas 2 dias para a verdade ser revelada!” “Veja provas, documentos e relatos de uma investigação profunda que mostra o que foi enterrado por 50 anos. Hoje é dia de abrir uma página da história que ninguém leu!”.
Quem não leu, poderia ter lido. Porque o essencial dessa história está disponível desde 2004, quando a pesquisadora Beatriz Kushnir lançou o livro Cães de Guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988, fruto dos cinco anos de sua pesquisa de doutorado. No texto que publicou há duas semanas no blog da Boitempo, “O colaboracionismo do Grupo Folha da Manhã à ditadura civil-militar e seu braço executor: a Folha da Tarde”, a autora recorda que seu estudo reuniu 60 entrevistas com jornalistas e censores e extensa pesquisa documental em diversas instituições, à exceção de projetos empresariais de memória, para fugir do tom “chapa branca” que esses depoimentos carregariam. “As conclusões”, escreve, “foram reconhecidas para auxiliar tanto a Comissão Nacional da Verdade, sendo citadas em seu relatório, quanto a Comissão Estadual da Verdade (CEV) ‘Rubens Paiva’. Atualmente, este estudo auxilia o MP-SP na investigação sobre a participação empresarial no pós-1964”.
Conviria, portanto, dar a devida relevância a esse trabalho pioneiro, num momento em que se avança de maneira tão significativa para uma inédita responsabilização de um tão importante grupo de comunicação no esquema de repressão que vitimou tantos combatentes contra a ditadura.
E já que recordamos a campanha publicitária em que esse jornal jura que sempre defendeu a democracia, convém também lembrar uma campanha anterior, de 1997, comemorativa dos 75 anos da Folha.
Foi uma série publicada em página inteira no caderno principal do jornal, que expunha materiais danificados ou cenas de violência – máquinas de escrever e disquetes quebrados, câmeras fotográficas e rolos de filme destruídos –, e a frase no rodapé: “Nestes 75 anos a gente apanhou um bocado. Mas aprendeu a fazer o melhor jornal do país”.
Pois uma das peças utiliza justamente as imagens dos carros do jornal destruídos pelos “bandidos do terror”. Pelo menos quatro imagens, relativas às duas ações de grupos armados realizadas em 1971, em represália ao uso daqueles carros pela repressão. Imagens misturadas a outras, também de carros danificados, de épocas anteriores e contexto diferente.


Estávamos em 1997, mas o jornal, metamorfoseado no baluarte da democracia, o jornal do “use amarelo pelo Brasil” da campanha das Diretas, o jornal “que mais se compra e nunca se vende” da famosa campanha que afirmava ser possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade, insistia em apresentar-se como vítima de uma agressão, invertendo o sentido simbólico daqueles carros destruídos, na contramão do que as denúncias já então sustentavam.
Muito tempo depois, Otávio Frias Filho reconheceria que os carros foram mesmo utilizados pela repressão, mas que isso teria ocorrido sem o conhecimento da direção do jornal.
Quem sabe o inquérito de agora ofereça a oportunidade de uma campanha de reparação?
O tom do Eduardo Moreira parece o outro lado da moeda de um Silvio Santos, grita demais. Como o texto da Beatriz foi “desconhecido” pela midia, nada a nos espantar. Tomara que os xovens vejam o documentário.
Heliete, espero que os jovens me leiam kkk bjs