Jogo explícito, resultado secreto
O Brasil é exasperante, mas não acabou. É preciso voltar a questionar a ordem.
1- A “partida” jogada ontem na Câmara foi entre dois times conservadores: bolsonaristas extremistas e “institucionalistas” de Hugo Motta, presidente oficial do Centrão. As ligações, interseções e intimidade de projetos entre ambos são bem conhecidas. Brilha a discrição muito discreta das forças governistas e da esquerda de forma geral, ressaltada a combatividade de alguns parlamentares, especialmente do PSOL e da Rede.
2- O resultado da partida é secreto. Está ainda guardado numa gaveta cujo conteúdo a esquerda só terá acesso por enquanto por rumores e deduções, pois é o conteúdo do “acordo” que permitiu a Motta assumir o cargo para o qual foi eleito - por quase unanimidade, incluindo PT e PL. Pode ser que seja ruim ou, pelo contrário, pode ser muito ruim.
3- A mise-en-scène foi ruim: como detalha Hugo Souza em mais uma síntese documental precisa. Os “amotinados” não foram obrigados a sair da posição de tutela do presidente que autorizaram a assumir e as “sóbrias palavras” que proferiu - no comentário da institucionalista Globo News - foram muitas vezes acompanhadas pelo balançar positivo de cabeça de Nikolas Ferreira.
4- Os sinais são, portanto, de uma história de fracassos e desgraças garantidas para as maiorias, seus direitos e a ideia de democracia: acordos com o golpismo que o premiam de alguma forma.
5- Não está dado que haverá algum golpe total como o desejado pela extrema-direita. Eles não têm para isso maioria eleitoral nem uma posição decidida e unificada das classes dominantes, inclusive de seus porta-vozes na mídia. Mas é provável que recebam algumas recompensas imediatas e uma grande a médio e longo prazos. No imediato, alguma amenização às punições pelo 8 de Janeiro. À prazo, a lição de que o golpismo compensa.
6- O campo democrático e do governo precisam responder. As pesquisas mostram que o golpismo está em minoria no que chamam “opinião pública”, mas isso é apenas um potencial para o “nosso” lado sobre essa questão. É preciso que seja de fato uma maioria política, mobilizada. A burguesia parece mais preocupada em pressionar o governo para que trabalhe para que ela não perca nada com o tarifaço de seu amigo do Norte (e o governo trabalha prioritariamente para isso e com afinco): a disputa pelo fundo público vai se agudizar, já que os “incentivos” aos setores exportadores vai pressionar ainda mais os “gastos sociais”.
7- O “pano de fundo” desta crise está ligado a dois processos: o histórico descompromisso das elites socioeconômicas com a “normalidade institucional” - sendo o golpismo permanente um traço do regime político brasileiro - e a crescente deterioração do que nunca foi bom, o regime interno do nosso Legislativo. Não foi agora, com o “combo” emendas e normas eleitorais, fundo partidário bilionário, estruturas sociais vulneráveis, que os parlamentos se tornaram o poder burguês mais antipopular e leviano. O estágio atual é resultante de um processo que vem evoluindo e contra o qual a esquerda, ainda que com alguns notáveis lutadores como representantes, não soube se contrapor, preferindo sempre ocupar as brechas ainda deixadas e cantar micro vitórias para as suas próprias bases eleitorais.
8- É preciso dizer com precisão: os parlamentos brasileiros - incluindo as assembleias legislativas e câmaras de vereadores - estão entre os mais poderosos e não democráticos do mundo: “instâncias” não previstas pela lei, desrespeito à proporcionalidade, lógica de “votação” apenas do que é acordado, hiperconcentração de poder nos presidentes e mesas, distribuição não democrática das comissões, velocidade arbitrária dos processos de debate, votação eletrônica de questões gravíssimas, impedimento do acesso popular ao direito à pressão, cobertura fraquíssima por parte da mídia, manipulação massiva na internet dos debates.
9- Lula é o principal nome da esquerda desde 1989 e o PT o principal partido. Nunca fizeram uma campanha séria pelo voto em deputados de seu campo e sinalizaram no sentido contrário ao ampliar sem limites as alianças eleitorais, contando hoje, inclusive, com setores golpistas (como o Progressistas) em seu ministério. Em 22, ensaiou-se no início um discurso “não adianta votar em mim e num deputado de direita”, mas depois este foi secundarizado. Agora, se o fizer em 26, por força do abandono por parte do Centrão, é muito provável que seja tarde. É difícil imaginar que essa estrutura funda que é a direitização do Congresso vá se reverter com base em pregação de campanha.
10- A reeleição de Lula é ainda uma possibilidade concreta e uma necessidade de contenção ao golpismo, mas, sem a reversão deste processo longo, contínuo, de raízes profundas, de caminho do país para a direita - que, definitivamente, não se fará apenas com a manutenção dele na presidência - poderemos ter um novo quadriênio ainda mais conturbado e um futuro ainda mais incerto.
11- Dentro do campo mais amplo e frágil do “não golpismo” - que ainda inclui uma vacilante parte das elites - a esquerda precisa voltar a ser assertiva, colocar horizontes, retomar a capacidade de questionar a institucionalidade de um ponto de vista das maiorias (hoje, a extrema-direita está com o monopólio da ousadia). É tempo, é tempo. Não sabemos se o resultado da partida de ontem é muito ruim, mas ainda pode ser apenas ruim e o apenas ruim pode ser, com decisão e inteligência, transformado em razoável e o razoável...
Para nosso cansaço, ansiedade e esperança: não acabou. Então, vamos.